segunda-feira, 31 de maio de 2010

A crise ambiental e a nossa Casa Comum


A percepção dos brasileiros de que os EUA são o maior culpado pelo aquecimento global – percepção correta, uma vez que é o país que mais contribuiu historicamente para o acúmulo de gases do efeito estufa na atmosfera – leva à essência do problema do aquecimento global: o consumo excessivo. “Vivemos numa cultura da estupidez e da insensatez. Não é estúpido e insano que 500 milhões sejam responsáveis por 50% de todas as emissões de gases de efeito estufa e que 3,4 bilhões respondam apenas por 7% e sendo as principais vitimas inocentes?”, pergunta Leonardo Boff.

A indagação de Boff é pertinente. Na origem da crise ecológica está o consumo desenfreado de um décimo da humanidade. Quando se pensa que uma sociedade sustentável é aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas futuras, percebe-se que o modo de produção e de consumo de parte da humanidade está comprometendo a vida das futuras gerações. É esse egocentrismo que está decidindo a sorte dos que virão depois de nós, deixando-lhes um mundo árido, poluído e feio.

Reduzir a emissão dos gases-estufa exige a redução do consumo. Aqui se situa o maior dilema da humanidade. A ideia e o pensamento do que importa é o crescimento econômico e o restante é secundário não se sustenta mais. Por trás dessa ideia está a lógica de que os recursos naturais são sempre abundantes, infinitos. Não há porque se preocupar com a possibilidade de que algum dia teremos falta de petróleo, de carvão, de aço, de água, de energia… para alimentar a “máquina” do progresso humano. Construiu-se uma crença no crescimento econômico – o capitalismo vive da promessa de que o futuro é sempre promissor e de que o desenvolvimento econômico é inesgotável. Essa lógica econômica vigente nos últimos 200 ou 250 anos, se transformou em uma mentira.

Tome-se como exemplo a questão energética. A civilização moderna é insaciável por energia. A voracidade por energia está associada aos padrões sempre crescentes de produção e consumo. A energia impostou-se no centro do desenvolvimento neste início do século XXI. Não há país no mundo hoje que não esteja às voltas com a questão energética, que tem hoje o potencial de estrangular qualquer economia. O mundo necessita sempre mais de petróleo, carvão, gás, eletricidade, energia nuclear e agora biocombustíveis. O uso sempre ascendente de energia, entretanto, é incompatível com a crise ecológica. Quando mais energia se consome mais pressão se exerce sobre os recursos naturais.

Reduzir emissões, portanto, significa mudar a matriz energética e aí começa um dilema que o planeta precisa enfrentar. Buscar fontes alternativas de energia para evitar as emissões de gases poluentes implica alocar mais trabalho e capital, o que reduziria os lucros do sistema produtivo. “A saída é alterar a estrutura de consumo mundial e os paradigmas de distribuição dos recursos. No momento, não há forças políticas que conjuminem essas necessidades”, afirma o professor Ildo Sauer, do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP.

Chegamos ao ponto nevrálgico da crise ecológica. Quem obrigará os mais ricos a consumirem menos? Que deixem de comprar SUVs – carros utilitários esportivos enormes e potentes – poluidores? Que viagem menos? Comprem menos? Comam menos?

Nessa perspectiva, as reflexões de José Eli da Veiga são instigantes. Segundo ele – que acaba de lançar a obra Mundo em Transe – Do Aquecimento Global ao Ecodesenvolvimento – “grandes negociações internacionais sobre a questão climática terão pouco efeito prático se os países continuarem a seguir o modelo de crescimento econômico acelerado como norte de suas políticas”. Afirma Veiga: “Esse é um debate muito difícil, mas que já começa a ganhar espaço em alguns países. Se mesmo nas economias mais ecoeficientes a pressão por recursos naturais aumenta, entre elas a do carbono, isso só pode ser explicado como um efeito do crescimento dessas economias. A questão é que a prosperidade de uma nação não pode ser reduzida à produção ou ao consumo, ou seja, não pode ser entendida simplesmente como sinônimo de crescimento econômico”.

Na prática, isso quer dizer que países que alcançaram elevados padrões de vida e consumo, como os escandinavos, poderiam abrir mão do crescimento econômico em troca de um modelo de desenvolvimento realmente sustentável. Num futuro distante, essas economias poderiam até “encolher”, sem que isso representasse perda dessa condição próspera. “Obviamente, esse é um conceito que ainda levará tempo, que é aplicável hoje apenas para países sem desigualdades. No entanto, vemos um esforço grande de governos nesse sentido, sobretudo os que estão olhando não para os próximos 10 ou 15 anos, mas para daqui 50 ou 60 anos. A busca por novas métricas que substituam o PIB como parâmetro de desenvolvimento econômico, como a do governo francês, é um ótimo exemplo nesse sentido.”

Nesse debate situa-se o Brasil. Em que pese a proposta ousada do Brasil em Copenhague – o país anunciou oficialmente seu compromisso de reduzir voluntariamente entre 36% e 39% de suas emissões até 2020 – e sobre a qual pairam uma série de dúvidas, entre elas, de como irá garantir essa redução, é necessário olhar criticamente o modelo econômico em curso no país que estimula a todo custo o consumo. Sintomático nesse sentido é uma afirmação de Lula nessa semana: “Jamais na minha vida pensei que eu ia para a TV fazer apologia do consumo. Na juventude, eu era contra a sociedade consumista”. Consumo esse que vem exigindo do país esforços gigantescos em investimentos na área de infraestrutura, como por exemplo, na área da energia.

A crise energética está umbilicalmente ligada à crise climática. O modelo energético do país para além do atendimento de energia para a demanda interna se presta, sobretudo a garantia da produção de commodities para exportação (minérios, grãos e combustível) que no exterior sustentam os altos padrões de consumo de parcela pequena da população mundial.

É nesse contexto que dever ser analisadas criticamente os pesados investimentos brasileiro em recursos energéticos ainda tributários da sociedade industrial: hidrelétricas, usinas nucleares, petróleo, agrocombustível. Neste aspecto, o Brasil em vez de assumir a vanguarda no processo de descarbonização da economia, investe em matrizes superadas – grandes hidrelétricas como as do Rio Madeira e de Belo Monte e usinas nucleares. Essas grandes obras implicam em grandes inundações de terras, no caso das hidrelétricas, em significativos deslocamentos de pessoas e em devastação ambiental gigantesca. São matrizes centralizadoras e concentradoras – razão dos sucessivos apagões.

Essa é também a lógica subjacente aos agrocombustíveis que utilizam grandes extensões de terra, produção em larga escala, avançando sobre terras agricultáveis e voltadas para suprir preferencialmente o mercado externo. É nesse mesmo sentido que se deve olhar criticamente o pré-sal. E, ainda pior, via de regra, esses mega-projetos estão antes de tudo a serviço dos interesses do capital.

Como destaca José Eli da Veiga, em recente entrevista ao IHU, o Brasil está perdendo o bonde da história, exatamente por uma visão obtusa de desenvolvimento. Comentando a Conferência de Copenhague, ele afirma: “A importância que eu dou para Copenhague não é tão grande. A transição ao baixo carbono está em curso faz tempo e independe de Copenhagen. Os países que mais rapidamente perceberam que em vez de um problema, uma restrição, isso é uma grande oportunidade para uma nova etapa do capitalismo, já estão há muito tempo investindo em ciência, tecnologia e inovação. Assim, eles possuindo essas tecnologias que poderão ser a solução, terão as oportunidades de negócio. Isso está ocorrendo e vai continuar ocorrendo, seja qual for o resultado de Copenhague. E os países emergentes, como o Brasil, que ficaram nessa linha obtusa de resistência, não investindo em ciência e tecnologia com prioridade, não terão essas tecnologias e continuarão tendo que discutir essa questão de como vão comprar tecnologia dos outros através da tal transferência de tecnologia”.

A grande questão posta hoje é que tipo de crescimento econômico queremos? Por muito tempo, inclusive na esquerda, acreditou-se que o crescimento econômico seria a varinha de condão para a resolução de todos os problemas. Particularmente da pobreza. A equação é conhecida. O crescimento econômico produziria um círculo virtuoso: produção-emprego-consumo. Porém, o axioma de que apenas o crescimento econômico torna possível a justiça social não é verdadeiro. Será que o grande projeto brasileiro é transformar todos cidadãos em consumidores. É preciso complexificar o debate.

O grande desafio é construir uma sociedade que seja sustentável com a natureza, às necessidades humanas presentes e futuras, com uma ética solidária, definidas desde os setores populares, tendo como fim a construção de uma sociedade baseada em valores da solidariedade, liberdade, democracia, justiça e equidade.

Segundo Leonardo Boff, “temos que torcer para que em Copenhague não prevaleça a estupidez mas o cuidado pelo nosso destino comum”. Continua ele: “Todos somos coproprietários da única Casa Comum e somos corresponsáveis pela sua saúde. A Terra pertence a todos. Nós a pedimos emprestado das gerações futuras e nos foi entregue em confiança para que cuidássemos dela. Se olharmos o que estamos fazendo, devemos reconhecer que a estamos traindo. Amamos mais o lucro que a vida, estamos mais empenhados em salvar o sistema econômico-financeiro que a humanidade e a Terra”.

Conjuntura da Semana. Uma leitura das ‘Notícias do Dia’ do IHU de 24 de novembro a 08 de dezembro de 2009

Ecodebate, 14/12/2009

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César Torres