sábado, 4 de setembro de 2010

Transição Urbana e Transições Demográficas





A história do surgimento das cidades não chega a 6 mil anos e só foi possível após a revolução agrária – ocorrida entre 10 e 12 mil anos atrás, quando ocorreu a domesticação dos animais e o domínio da agricultura – que possibilitou a geração de um excedente de produção capaz de sustentar uma população que passou a viver no meio urbano e se beneficiou da disponibilidade de recursos de subsistência advindos do meio rural. Foi com a agricultura e a pecuária que os povos caçadores-coletores (nômades) deram o passo decisivo para o domínio da natureza e para o processo de fixação (sedentarização) urbana. Não resta dúvida de que as cidades são fruto dos avanços da produtividade rural, pois não conseguriam viver de outra maneira.

Mas as cidades se mantiveram limitadas dentro de um território definido não pela cidade em si, mas pela disponibilidade de produtos agro-pecuários que ela era capaz de absorver em sua área de influência e domínio. A área de influência das cidades sempre foi limitada pela própria produtividade urbana e do grau de sua força militar e política. Assim, o crescimento das cidades dependia de uma dupla determinação: as cidades cresciam em função da produtividade rural e sua área de influência dependia da capacidade da cidade de manter um determinado território sob controle (militar, político e/ou econômico).

Até o final do século XVIII mais de 95% da população mundial estava no meio rural e as taxas de mortalidade e natalidade eram extremamente altas. Tudo isto começou a mudar com a Revolução Industrial que possibilitou a criação exponencial de máquinas e equipamentos e o uso de energia – não humana ou animal – no processo produtivo em massa. O desenvolvimento científico e tecnológico da sociedade urbana industrial – mesmo não sendo aquele de caráter humanista defendido pelos pensadores iluministas – propiciou um grande desenvolvimento econômico e social.

A Revolução Industrial se concentrou no meio urbano e possibilitou o crescimento e o desenvolvimento das cidades. Mas os ganhos não vieram de forma linear. Ao contrário, as condições de saúde e a esperança de vida piroram nas cidades no começo da Transição Urbana. Só com os avanços da produtividade industrial, com a melhoria das técnicas agricolas, com a melhoria dos transportes e com o avanço da medicina e do saneamento básico foi que as taxas de mortalidade começaram a baixar e houve um progressivo aumento da esperança de vida. Assim, a partir de uma determinada etapa, que varia de país a país, a Transição Urbana propiciou o início da Transição Demográfica.

A Transição Urbana, sem dúvida, influenciou muito a Transição Demográfica, sendo que as primeiras abordagens teóricas da Transição Demográfica tiveram origem na Teoria da Modernização. De forma bastante resumida a Teoria da Modernização diz que os ganhos de produtividade da economia possibilitaram o aumento da oferta de bens e serviços, especialmente alimentos, educação e saúde, criando as condições para a queda das taxas de mortalidade. A fecundidade permaneceu alta em decorrência das doutrinas religiosas, dos códigos morais e dos costumes comunitáros e familiares da sociedade tradicional. Porém, com o advendo da sociedade moderna mudam-se a relação custo/benefício dos filhos, os costumes e os velhos tabus e preconceitos são superados, passado a haver um controle generalizado da fecundidade. No primeiro momento existe uma aceleração do crescimento vegetativo da população, mas com a continuidade de queda das taxas de natalidade o crescimento natural diminui, podendo até se tornar negativo.

As abordagens mais simplistas identificam a Transição Urbana como a passagem de uma sociedade tradicional (ou feudal) para a sociedade moderna (ou urbana e industrial). De maneira ainda mais simples, se diz que a Transição Urbana foi a causa principal da Transição Demográfica. Na verdade as duas Transicões se auto-influenciam e se reforçam, convivendo no mesmo espaço e tempo e só em pequena parte podem ser entendidas como fazendo parte dos desdobramentos daquilo que o Marquês de Condorcet chamava de “perfectibilidade humana”. Além disto, é preciso distinguir o processo de Modernização dos processos de Ocidentalização e de Secularização e entender o processo que Weber chamava de “desencantamento do mundo”.

A transição demográfica pode acontecer em sociedades predominantemente rurais. A Tailandia é um caso típico. Mas o exemplo mais significativo é o da China que assistiu a Transição Demografica antes da Transição Urbana. Segundo dados da ONU a área rural da China absorvia mais de 2/3 da população chinesa quando se deu a grande queda da fecundidade nos anos 1970, antes da dacroniana política de filho único, de 1979. Não foi a urbanização que derrubou as taxas de fecundidade na China. Ao contrário, foi a Transição Demográfica – juntamente com as reformas econômicas – que possibilitou a Transição Urbana e a diminuição das barreiras à migração rural-urbana (flexibilização do sistema de registro de residência conhecido como “hukou”).

Como mostrou Caldwell, a Transição Demográfica depende da reversão do fluxo intergeracional de riquezas entre as gerações. Esta reversão é ajudada pela Modernização (urbanização e industrialização), pela Ocidentalização e pela Secularização. Mas principalmente está relacionada com as mudanças na estrutura familiar e nas relações entre os gêneros e as gerações. A Transição Demográfica não é uma consequência deterministica da Transição Urbana.

Também a continuidade da Transição Demográfica não depende do grau de urbanização do pais. A Segunda Transição Demográfica acontece em diversos ambientes urbanos e é explicada pela diversificação dos arranjos familiares. A Terceira Transição Demográfica tem a ver com o processo de retirada da procriação e o crescimento do percentual de pessoas e casais sem filhos. Embora as características da Segunda e da Terceira Transição Demográfica sejam comumente mais encontradas nas áreas urbanas, elas estão presentes também no meio rural. Além disto o rural do século XXI não é o mesmo dos séculos anteriores. O chamado “novo rural” pode ser um espaço – que mesmo fora das cidades – é caracterizado por uma sociabilidade que nada difere da sociabilidade urbana.

Não é impossível se pensar em uma situação em que os países com fecundidade muito abaixo do nível de reposição e com declínio populacional assistam a uma redução de suas populações e áreas urbanas (que concentram as menores famílias) e um aumento percentual relativo de suas populações rurais. Nesta hipótese, teremos as Transições Demográficas influenciando e determinando uma certa reversão da Transição Urbana.

A transição urbana e as transições demográficas são dois fenômenos espaciais e sociais da maior importância. São como dois filhos gêmeos da modernidade e que, ao crescerem, ajudaram a reconfigurar o mundo moderno e, hoje, preparam as bases para uma nova transição ainda mais importante: a transição da economia de alto carbono para a de baixo carbono.

José Eustáquio Diniz Alves, colunista do EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves{at}yahoo.com.br
EcoDebate, 07/07/2010

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César Torres