O meio ambiente e o trabalho: a dignidade humana neste espaço.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado é reconhecido juridicamente como um bem de uso comum do povo. Inicialmente, fomos levados a pensar na proteção do ambiente sem a presença do ser humano. Nos dias atuais, sabemos que as questões ambientais perpassam todas as atividades humanas, não apenas a nossa relação com o ambiente natural. Diante disso, temos de assumir a tarefa de conhecer melhor de que modo as atividades humanas, entre as quais o trabalho, interferem na qualidade do ambiente e de que modo a qualidade do ambiente interfere na vida de todos os seres e também no bem-estar dos trabalhadores. Ressalte-se que o trabalho como um valor social é componente indissociável da dignidade da pessoa humana, princípio em torno do qual gravita todo o ordenamento jurídico moderno.
O modo capitalista de produção e o meio ambiente
Entendemos que uma reflexão, mesmo inicial, acerca da interação entre meio ambiente e o trabalho humano, sob a perspectiva da dignidade humana, deve passar inevitavelmente por duas considerações. A primeira, a deterioração do ambiente do trabalho em razão das constantes e inconseqüentes mudanças nas técnicas de produção, capitaneadas pelo racionalismo e defendidas pela ideologia dominante nos três últimos séculos, para atender aos interesses econômicos somente. O nosso modo de vida, ao longo do tempo, como consequência disso, (des)orientado pela civilização ocidental, vem causando danos irreparáveis no ambiente em geral e nas relações humanas, seja no âmbito familiar, seja nos espaços públicos e privados de convivência. O corpo e a mente das pessoas que trabalham padecem em consequência dessa deterioração. A maioria dos empreendimentos priorizara a maior produtividade e a absolutização do lucro, desconsiderando aspectos essenciais para a sustentabilidade da vida dos seres que povoam nosso planeta.
A segunda consideração que devemos fazer é acerca da exploração irracional dos bens naturais em todo o planeta, base do modo capitalista de produção. A necessidade da constante ampliação da produção, na maioria das vezes, de objetos de consumo desnecessários[2], mediante o uso intensivo de água e energia, vem causando o esgotamento da capacidade de regeneração da natureza e a degradação do meio, devido às enormes e inconsequentes agressões aos ecossistemas naturais, seja para a obtenção de matérias-primas para a indústria, seja em vista da grande quantidade de resíduos resultantes do processo de industrialização. O lixo vai se acumulando com o descarte das embalagens, com os rejeitos industriais, ou os bens substituídos por modelos industriais mais sofisticados.
Mas a pior consequência de tudo isso são as mudanças climáticas em todas as regiões do planeta, segundo informam os estudiosos do tema. O lançamento diário de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera, principalmente pelos países mais industrializados, provoca o conhecido aquecimento global. Cientistas respeitados apontam esse fenômeno como o responsável pelos desastres ambientais cada vez mais constantes e de consequências imprevisíveis, inclusive o comprometimento das condições naturais para a produção dos alimentos necessários à vida dos seres humanos e dos animais.
Não podemos desconsiderar que este modo de produção retirou dos trabalhadores os meios necessários para a geração de renda fora das relações de emprego, como historicamente foi o cultivo da terra, a criação de pequenos animais para o consumo direto e para as pequenas trocas, e o trabalho manufaturado nas pequenas comunidades. É de se ressaltar ainda que a perda da qualidade de vida em todo o ambiente ocorreu de forma gradativa e numa progressão geométrica em vista de não terem sido resguardadas as condições essenciais para a vida, como a qualidade do ar, os níveis saudáveis dos ruídos, a boa qualidade do solo e da água, e, principalmente, as relações sociais deterioradas pela urbanização e pela permanente competição e exploração capitalistas. Vivemos em um mundo que só tem lugar para os “melhores”, ou seja, os que têm renda suficiente para estarem inseridos no consumo de bens, incluída aí a educação. Para isso, vive-se a ilusão de que é preciso trabalhar muito. Muitos vivem da exploração de outros seres humanos para alcançar a acumulação de riquezas. Para ilustrar tudo isso basta ver que no imaginário popular os profissionais mais bem sucedidos são aqueles que conseguem ganhar ou que podem gastar muito dinheiro.
Outro fator que contribui para a perda de qualidade de vida no ambiente são as péssimas condições de habitação e transporte no espaço urbano que atinge sobremaneira a população empobrecida. A urbanização irresponsável causada pelo processo de industrialização e pela ausência de reforma agrária fez com que o direito à moradia e o de locomoção, mesmo sendo direitos originários de necessidades humanas básicas, expressos na Constituição, sejam sistematicamente ignorados, o que compromete o descanso, o bem-estar e a paz dos trabalhadores nas grandes cidades. Em vista disso, os trabalhadores não podem sequer recompor diariamente a sua força de trabalho.
Temos observado que os empregados dos postos de trabalho de pior remuneração são os que moram mais distantes dos locais de trabalho e cotidianamente saem de casa duas ou três horas antes da jornada, gastando o mesmo tempo para retornarem às suas casas. Causa-nos indignação constatar que consomem o equivalente à metade do tempo remunerado (e mal remunerado) para o deslocamento de suas casas até o trabalho e em péssimas condições de transporte, sempre em pé nos ônibus superlotados, ou esperando em longas filas. Às vezes ainda somos hipócritas receitando para esses trabalhadores fórmulas para melhorarem de vida. Sugerimos que voltem a estudar para ocuparem postos mais qualificados e com melhor remuneração, mas no fundo sabemos que é impossível para eles disporem de tempo para cuidar da formação profissional perdida. Por outro lado, a classe média pode até se dar ao luxo de ter mais de um emprego, porque tem o seu próprio transporte, mesmo vivendo na ilusão de que se trabalhar muito poderá ganhar mais, acumular, para um dia, enfim, poder curtir a vida. Só que para muitos esse dia não chega, as doenças modernas chegam primeiro.
Cabe aqui acrescentar outras necessidades humanas que têm sido sistematicamente relegadas a segundo plano. São elas os valores culturais que incluem os saberes, as paisagens naturais, os costumes e as tradições populares. A urbanização acelerada em todo o mundo foi a responsável pela perda da qualidade de vida de muitos trabalhadores, apesar de aparentemente ter criado melhores condições de vida para parte da população.
A tarefa então de compreender as relações existentes entre o meio ambiente e o trabalho passam, no nosso entendimento, por esses dois aspectos acima citados. Precisamos conhecer como a degradação do ambiente de trabalho e a perda da qualidade de vida dos trabalhadores, no modo capitalista de produção, ocorrem nos dias atuais. Vemos que essa situação vai se naturalizando, mesmo após tanta luta dos sindicatos e dos movimentos de trabalhadores organizados que se opõem aos modos de produção que caracterizam esse sistema-mundo[3] em que vivemos.
É preciso acrescentar que não somente a apropriação burguesa do valor do trabalho não pago, a mais-valia, conforme denominada por Marx, permitiu a acumulação de riquezas sem precedentes na história e trouxe tantos malefícios aos trabalhadores. Nos dias atuais, estamos cientes de que o custo da degradação ambiental, não cobrada dos donos do capital em seus empreendimentos altamente lucrativos, também é uma forma de apropriação da mais-valia.[4] Ao longo do tempo, os danos ambientais vêm sendo despejados como um fardo sobre os ombros dos trabalhadores do campo e das cidades[5], pondo em risco não apenas a saúde dos trabalhadores mesmos, mas a vida de todos os seres vivos no planeta, perpetuando o círculo vicioso das injustiças sociais.
Para compreender melhor como tudo isso ocorre vamos tratar no próximo tópico da ideologia do trabalho.
A ideologia do trabalho
Quando buscamos na literatura especializada o sentido do trabalho como um valor, descobrimos que nem sempre essa atividade humana foi vista da mesma forma pelas diferentes classes sociais, épocas e nações. Ora foi exaltado, ora desprezado.
Para os gregos, há 2.500 anos, o pensar requeria o ócio, conforme mencionado em Aristóteles. Mas para sustentar uma elite pensante foi necessária a existência de escravos, situação camuflada por sutis argumentos que a justificavam em vista de ser uma vergonha para aquela sociedade. Já na Idade Média predominou o regime da servidão, um meio-termo entre o trabalho escravo e o trabalho livre. Nessa época não se tem notícia de uma preocupação com o produtivismo. As classes dirigentes, nobreza e clero, de costumes requintados, evitavam atividades ligadas ao trabalho. Os trabalhos manuais eram considerados inferiores. No aspecto religioso, nota-se, desde aquela época, um contraste. Por um lado, parte dos católicos foram doutrinados na concepção do trabalho como penitência para o pecado e uma oportunidade para a redenção divina. Vem da Bíblia a máxima: “ganharás o pão com o suor do seu rosto”[6]. Para uma determinada concepção protestante, o trabalho é um meio de obter riqueza e uma forma de servir a Deus, pois mantém à distância o ócio e a luxúria. Max Weber, no livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, avançou na tese de que a ética e as ideias puritanas influenciaram o desenvolvimento do capitalismo uma vez que, tradicionalmente, na Igreja Católica Romana, a devoção religiosa estava acompanhada da rejeição dos assuntos mundanos, incluindo a ocupação econômica. Weber definiu o espírito do capitalismo como ideias e hábitos que favorecem, de forma ética, a procura racional de ganho econômico.
Mas a ideia central que prevaleu na valoração do trabalho foi o produtivismo, maior imperativo desde o surgimento do capitalismo. Tornou-se revoltante para a elite burguesa a indolência e o ócio. Tem-se mesmo notícia do uso da força para obrigar as pessoas a trabalhar. Por toda parte surgiram os filósofos e economistas exaltando o trabalho como a única fonte de riqueza e alardeando o trabalho livre assalariado como a liberação do homem do jugo da servidão medieval.
Paulo Sérgio do Carmo[7] destaca que “a exaltação do trabalho tornou-se tão forte que, para muitos, o ócio e até mesmo o lazer, quando praticados, vêm acompanhados de sentimento de culpa” e isso prevalece como ideologia nos dias atuais. Em muitos países a ociosidade foi criminalizada como vadiagem. No Brasil foi tratada juridicamente como contravenção penal, ou seja, um delito de menor potencial ofensivo à ordem. Nos dias atuais vemos que o melhor argumento para o relaxamento de prisões ilegais ou para a fundamentação das ações de habeas corpus não é a descaracterização da medida como injusta, mas a comprovação de que o preso, ou o ameaçado de prisão, é um trabalhador formal. Essa, pois, uma forma de obrigar, legalmente, que as pessoas vendam a sua força de trabalho, de modo a permanecerem servis ao desenvolvimento do grande capital.
Os meios de comunicação alimentam esse modo de pensar levando a crer que a delinquência é oriunda da falta de vontade de trabalhar. Parte de população defende a imposição de trabalhos forçados nas prisões para atenuar a criminalidade. Outro aspecto defendido pelos conservadores é o orgulho de começar a trabalhar cedo. Nos estratos sociais de baixa renda, ainda que o jovem tenha de abandonar os estudos devido à necessidade de sobrevivência, sobreleva-se a crença de que quanto mais cedo a pessoa começa a trabalhar, maiores serão suas chances de ser bem sucedida, quando na realidade o que ocorre é exatamente o contrário, pois não se preparando para entrar no mercado de trabalho, será condenada a executar tarefas mal remuneradas em troca da sobrevivência, contribuindo assim para a manutenção do círculo vicioso da sociedade de classe. Na prática, a receita para o jovem filho de família rica é estudar primeiro e bastante para só depois começar a trabalhar, já com quase 30 anos de idade. Por outro lado, os filhos de famílias empobrecidas devem já iniciar a trabalhar na adolescência, sendo, na maioria das vezes, forçados a abandonar os estudos. Assim, salvo raras exceções, será “escravo” a vida toda.
Temos de ressaltar, todavia, que a exaltação do trabalho como única fonte de riqueza não conseguiu suportar a simples indagação sobre a existência de uma multidão de mendigos que infestava as cidades e trazia diversos problemas na fase inicial do capitalismo industrial, fato explicado pelos sociológos, defensores da ideologia dominante, tanto pelo crescimento desordenado da população, quanto pela incapacidade de o homem comum alcançar os meios de subsistência aproveitando as oportunidades oferecidas pelo novo sistema econômico. Mas, essas oportunidades, preconizadas como possível para todos, fazem parte da mesma ideologia: a exploração do trabalho humano. Acerca disso destaca Paulo Sérgio do Carmo[8]:
Os donos de grandes fortunas passam a ideia de que toda riqueza é montada à custa de grande disposição para o trabalho. Bem sucedidos, sentem-se estimulados a trabalhar cada vez mais e, por esse mesmo estímulo, forjam uma imagem de que estão sempre satisfeitos com suas ocupações. Impulsionados por esse ideal, alardeiam uma suposta igualdade de oportunidades, pretendendo impor a todos um modelo de sucesso e felicidade que aparentemente só diz respeito a eles próprios.
No século XX, conforme destaca Paulo Sérgio, “deu-se tamanha amplitude ao termo ‘trabalho’ que este começou a ser utilizado para designar qualquer ação que realizamos”. Cita o autor o filósofo francês Paul Ricoeur quando afirma que a nossa “civilização do trabalho” emprega essa palavra para múltiplas atividades e até mesmo a atividade intelectual, contemplativa, foi nomeada como “trabalho intelectual”. Deste modo, o trabalho passou a preencher o vazio deixado pelo banimento do repouso, pela especulação contemplativa. Paul Ricoeur faz-nos ver que a constante atividade é o que impera em nossos dias. Vivemos assim em uma civilização que tem no trabalho a categoria econômica e social dominante e o seu único valor, sendo possível encontrar pessoas que afirmem mesmo, orgulhosas, serem “viciadas em trabalho”.
Foi também no século XX que a preocupação com o desempenho humano no trabalho assumiu ares científicos. Foi o momento da difusão de ideias e experimentos que visaram ao aumento da produtividade em razão do tempo o que faz surgir uma nova forma de exploração do trabalho humano e da degradação do ambiente do trabalho pela intensidade. Sobre isso trataremos no próximo tópico.
Brasil, década de 1990, uma nova onda de exigências no trabalho.
Nós brasileiros que iniciamos a nossa vida laboral no final da ditadura militar-empresarial, de 1964, pudemos vivenciar o processo de intensificação do trabalho[9] nas técnicas de produção das empresas. Na década de 1980, acredito, não tivemos a devida consciência de como fomos usados no laboratório das novas experiências de gestão empresarial. Iniciava-se, no Brasil, os novos modelos de racionalização das técnicas produtivas.
Nós brasileiros que iniciamos a nossa vida laboral no final da ditadura militar-empresarial, de 1964, pudemos vivenciar o processo de intensificação do trabalho[9] nas técnicas de produção das empresas. Na década de 1980, acredito, não tivemos a devida consciência de como fomos usados no laboratório das novas experiências de gestão empresarial. Iniciava-se, no Brasil, os novos modelos de racionalização das técnicas produtivas.
Vamos tomar como exemplo o Banco do Brasil em vista de termos experienciado diversos aspectos dessa onda de intensificação do trabalho na empresa, seja laborando, seja como dirigente sindical. Na década de 1980, ainda prevalecia no ambiente da empresa a metodologia de organização do trabalho que remetia aos comandos militares. Tínhamos uma retaguarda, onde eram realizadas as tarefas de suporte para a agência, a plataforma, onde eram atendidos os clientes e a bateria, onde ficavam os caixas que manipulavam os valores. O emprego tinha nítidas características do regime autoritário e burocrático, todavia, o Estado Social, ainda que como arremedo, aparecia nos direitos assegurados aos funcionários de carreira e deferenciados da maioria dos trabalhadores no país, o que chegou mesmo a ser considerado um privilégio. Os empregados do Banco do Brasil receberam a alcunha de “marajás”, o que na realidade foi uma forma de, por meio da linguagem, criar o terreno favorável para a posterior retirada de direitos. No processo de “redemocratização” do país, ao invés de estender aos demais trabalhadores as conquistas históricas dos trabalhadores do Banco do Brasil, que desde o início da carreira tinham direito à uma Caixa de Assistência da Saúde – a CASSI – e Previdência Privada – a PREVI, houve o desmonte dos planos de carreira e da garantia de remuneração justa por meio de diversos programas de gerenciamento por resultado. Inicialmente havia por parte dos empregados a expectativa de uma aposentadoria justa e a possibilidade de aquisição de casa própria após 10 anos na empresa.
Em geral havia a consciência de que outros trabalhadores não dispunham dos mesmos direitos, mas essa foi uma luta assumida junto com os demais sindicatos a partir de 1985, quando voltou à presidência da República um presidente civil. Muito se construiu junto para a elaboração da carta de direitos que iria constar no texto constitucional de 1988. Todavia, no Banco do Brasil e nas diversas empresas, públicas e privadas, como hoje se tem notícia, ao invés de os trabalhadores avançarem nas conquistas, todos foram sacudidos, desde o início da década de 1990, por uma onda de exigências cada vez maiores por mais trabalho e mais resultados. O modelo gerencial por resultados, na esteira do neoliberalismo que se alastrava por todo o planeta, chegou com toda a sua força para substituir o arcaico modelo burocrático existe no Brasil. Como consequência disso, diversos trabalhadores foram acometidos de doenças antes inexistentes no ambiente de trabalho, acidentes de trabalho como foi considerada a LER – lesão por esforço repetitivo -, depressão, problemas cardíacos. Houve pedidos de demissão por desespero, suicídios diante da postura truculenta de novos gestores, diversos casos de separação de casais devido ao achatamento brusco da remuneração e até morte precoce por doenças que hoje são consideradas como autoimunes, devido às pressões para a implantação imediata de novos métodos de intensificação do trabalho. Todos os trabalhadores foram praticamente obrigados a fazer cursos de qualificação para atender às novas exigências do mercado, principalmente para incorporar a linguagem das terminologias do mercado financeiro. A maioria foi iludida com a promessa de que da noite para o dia seria transformado de simples escriturário em gerente. Houve até a exigência de mudanças nos trajes. Para os homens foi exigido terno e gravata, para as mulheres os taillers, melhor imagem para as administradoras modernas. Muitos tiveram de deixar as suas residências no interior para atenderem às imposições da empresa que precisava adequar os novos quadros funcionais.
Os trabalhadores que ficaram doentes, ao retornaram às agências, após longo afastamento, foram vítimas de assédio moral, condenados aos trabalhos mais desqualificados e que nada tinham a ver com as atividades realizadas anteriormente. Muitos tiveram de engolir a humilhação de trabalhar em mesas improvisadas debaixo de escadas ou até ficar o dia inteiro organizando arquivos inúteis. Isso foi mascarado com a participação da Previdência Oficial que tratou o tema sob o eufemismo da reabilitação funcional.
Mas o que vem a ser essa construção histórica da intensicação do trabalho? Paulo Sérgio do Carmo constata que na sociedade pré-industrial não havia distinção nítida entre o lar e o trabalho. “A vida familiar confundia-se com o espaço comunitário da atividade produtiva.”[10] Destaca o autor a observação dos estudiosos, importante para este nosso trabalho, que apontam a era industrial como a responsável pela perda progressiva da capacidade de o homem narrar histórias e contar as suas façanhas e realizações. A arte de transmitir experiências é patrimônio herdado principalmente da produção artesanal, progressivamente em extinção.[11]
A atual revolução tecnológica contribui para que as pessoas sejam cada vez mais sugadas em suas capacidades de produzir mais trabalhos, a despeito de muitos assinalarem conquistas históricas dos trabalhadores para melhorar as condições de trabalho e diminuir os riscos na execução das tarefas. Ao contrário disso, as notícias que nos chegam, através de pesquisas, tal como a pesquisa sobre acidentes de trabalho nos setores da produção de calçados, vestuário e móveis, não são otimistas. Assinalamos o aumento dos acidentes e a deterioração dos ambientes de trabalho, em vista dos diversos aspectos já citados acima e conforme trataremos a seguir.
Intensificação do trabalho: a deterioração do trabalho em vista da racionalização do tempo.
Intensificação do trabalho: a deterioração do trabalho em vista da racionalização do tempo.
Para compreender esse fenômeno da intensicação do trabalho, Sadi Dal Rosso propõe diferenciá-lo de outros fenômenos correlatos. O ponto de partida é o fato de que qualquer trabalho só se realiza segundo determinado grau de intensidade. Mas a qual trabalho se refere o autor? A resposta vem da teoria marxista que, segundo ele, é a “transformação da natureza realizada pelos seres humanos empregando para isso meios e instrumentos a seu dispor e seguindo um projeto mental”.[12] Quando um projeto mental se atualiza, os sujeitos que o realizam gastam uma quantidade variável de suas energias físicas ou psíquicas. Portanto, a ideia de que todo ato de trabalho envolve gasto de energia, ou seja, exige esforço do trabalhador, é o cerne da noção de intensidade.
O trabalhador pode gastar mais ou menos energia, mas sempre gasta alguma coisa. A intensificação tem a ver com a maneira como o ato de trabalhar é realizado. Para avaliar a intensificação é preciso analisar diversos pontos. O primeiro é o grau de dispêndio de energia pelo trabalhador na atividade concreta. O segundo ponto é a atenção centrada sobre a pessoa do trabalhador, ou sobre o coletivo de trabalhadores para o alcance de um determinado resultado. Outros pontos considerados são as dimensões intelectuais, psíquicas e até emocionais do trabalhador ou do coletivo de trabalhadores. Conclui Rosso que a intensificação é mais que esforço físico, já que envolve todas as capacidades do trabalhador, sejam as do corpo, a acuidade de sua mente, a afetividade despendida ou os saberes adquiridos através do tempo ou transmitidos pelo processo de socialização.[13]
Destaca Rosso que há pelo menos duzentos anos prevalece a hipótese de que as mudanças tecnológicas que acontecem de tempos em tempos, além de substituir trabalho, que é a sua implicação primeira, também contribuem para o aumento do grau de intensidade. A consequência mais grave desse fenômeno da intensificação do trabalho é que no modo capitalista de produção, assim como no modo escravagista, o controle da intensidade sai das mãos do trabalhador passando a ser definido pelo empregador. O ato da compra e venda da força de trabalho confere ao comprador poder sobre como será utilizada essa mercadoria.
Para uma melhor compreensão do modo como a racionalização do tempo fez aumentar a intensificação do trabalho vamos tratar, a seguir, da adaptação do trabalho humano ao ritmo das máquinas. Em um primeiro momento houve a desvalorização do braço humano em concorrência com o movimento da máquina. Logo após, conforme bem observou Paulo Sérgio do Carmo, a máquina de calcular assumiu o papel do cérebro. Após longo período de crescimento da produção industrial o ser humano tornou-se apenas um apêndice da máquina. No final do século XX, o fator humano passou a merecer mais atenção, não por humanismo inesperado, mas porque o operário já não foi mais capaz de acompanhar o ritmo desejado de produção. Destacamos neste diapasão o taylorismo, o fordismo, o toyotismo e finalmente as novas teorias das relações humanas no trabalho.
O taylorismo surgiu nos Estados Unidos e foi idealizado pelo engenheiro Frederick W. Taylor, de formação puritana e de princípios rígidos. Taylor, que fora educado dentro de uma disciplina de veneração ao trabalho, criou uma nova ideologia produtivista, com realce para o método “científico” de organização do trabalho. Por esse método sistematiza-se todo o processo em seus mínimos detalhes. Podemos constatar que ao atribuir o estatuto de ciência a essa técnica, o taylorismo assumiu o caráter de um saber desinteressado, objetivo e neutro, dissimulando a concepção ideológica que ele reveste. Observa-se que o taylorismo ultrapassou os muros das fábricas, alcançando os trabalhos realizados em escritórios e até mesmo o trabalho intelectual. Ao final, generalizou-se como técnica social de dominação.
O taylorismo baseia-se na racionalização da produção a fim de aumentar a produtividade no trabalho, evitando o desperdício de tempo, economizando mão-de-obra, suprimindo gastos desnecessários e comportamentos supérfluos no processo produtivo. Taylor concretizou, de forma exemplar, a noção de “tempo útil”, o que contribuiu para que, a partir disso, a nossa sociedade do trabalho introjetasse a obsessão pelo relógio, o que é a manifestação concreta do tempo transformado em mercadoria. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, antecipando o espírito que prevaleceria na era seguinte constatou: “Tem-se vergonha do repouso; a meditação mais demorada causa remorso. Reflete-se com o relógio na mão, da mesma forma como se almoça com os olhos fixos no pregão da Bolsa.”[14]
Taylor acreditava que em vista de o processo de produção se tornar cada vez mais complexo não poderia ser deixado a cargo dos próprios trabalhadores, já que esses são resistentes às mudanças e apegados à tradição. Por isso, a aplicação de suas ideias acentua a separação entre trabalho “intectual” e trabalho “manual” no interior do processo produtivo. Segundo essa lógica, cada tarefa é decomposta em movimentos elementares e ritmados na mesma cadência do ritmo das máquinas. Essa “ciência”, então, deve ser posta em prática pela direção da empresa. Um exemplo bem nítido desse novo comportamento foi o uso do cronômetro para eliminar o “tempo morto” ou os “movimentos desnecessários”. Só que, ao reduzir a complexidade do saber do operário, o taylorismo gerou o desinteresse do trabalhador pela atividade.
Entretanto, o lado mais perverso do taylorismo é que com a simplificação do trabalho, em questão de dias ou horas um novo operário não-qualificado tornou-se capaz de aprender as tarefas. Consequência disso foi que os trabalhadores passaram a repetir as mesmas tarefas durante todo o dia e com salários cada vez mais irrisórios.
Na mesma trilha do taylorismo, veio a linha de montagem criada por Henry Ford para a fabricação em massa de automóveis. Ford desenvolveu o processo de atividade em cadeia, elevando o grau de mecanização no trabalho e aumentando a alienação do trabalhador. Essa obsessão pelo produtivismo deixou suas marcas, o que foi representado por Charles Chaplin no filme Tempos Modernos com o personagem Carlitos. Ao impor o ritmo do trabalho na esteira de montagem, Ford padronizou a mão-de-obra, eliminando o operário zeloso e o preguiçoso, pois ambos retardariam a marcha da produção. A esteira transportadora fixou o operário em seu posto, fazendo com que as peças venham até o trabalhador de modo que “nenhum trabalhador precise dar um passo”, conforme vangloriava Ford.
A monotonia, o tédio e, em consequência, a idiotização do serviço fez com que muitos trabalhadores deixassem os seus postos de trabalho nas fábricas buscando outros empregos, o que gerou a indesejável rotatividade excessiva nos postos de trabalho.
Por sua vez, no Japão, o modelo de intensificação no trabalho ocorreu em 1980, quando houve a consolidação econômica daquele país no mundo. A dinâmica do mercado globalizado criou a necessidade de aperfeiçoamento no processo produtivo japonês. Os modelos taylorista e fordista de produção em massa haviam sido considerados eficientes dentro da lógica de racionalização do tempo e do produtivismo por muito tempo, todavia eram muito rígidos para se adaptar às mudanças repentinas do mercado globalizado e de acirrada concorrência. Foi assim que o novo sistema produtivo desenvolvido no Japão, principalmente nas indústrias Toyota, possibilitava maior flexibilidade de expansão ou retração de acordo com as oscilações do mercado.
O modelo japonês, como pode ser simplificado todo o gênero das novas ideologias de produção desenvolvidas naquele país, combina um sistema de novas formas de gestão de recursos humanos, partindo do princípio de que quem sabe são aqueles que estão envolvidos diretamente com a produção. Destaca-se nesse modelo uma “conciliação” entre capital e trabalho em lugar dos conflitos. Por outro lado, o fator cultural propiciou um sentimento de identificação e pertencimento do trabalhador à empresa.[15] Implementa-se, deste modo, a revalorização do saber operário com qualificação permanente, incentivando o trabalho em equipe ou em “células”. Incentivou-se a participação coletiva, envolvendo todos os funcionários na resolução dos problemas da empresa. Trabalhadores qualificados e flexíveis, sem rígida especialização de tarefas, tornaram-se responsáveis pela qualidade, limpeza e manutenção da correção das falhas de produção.
Também o toyotismo extrapolou o espaço fabril e todas essas medidas foram aplicadas pelo mundo afora, com algumas modificações, em todos os setores de trabalho, comércio, bancos[16] e escritórios em geral.
O modelo científico criado por Taylor teve o mérito do pioneirismo no uso das técnicas e dos fatores fisiológicos envolvidos no processo produtivo, porém foi objeto de críticas ao se preocupar apenas com aspectos formais, gerando por outro lado a apatia, o tédio, a idiotização das tarefas, então despersonalizadas, a desatenção no trabalho e o conflito entre o trabalhador e a organização. Tudo isso levou o teórico da administração Peter Drucker a afirmar que “não se pode contratar apenas um braço; uma pessoa inteira vem junto com ele.”[17]
Em resposta a essas críticas foi que surgiu nos Estados Unidos a Escola de Relações Humanas com o objetivo de dar mais atenção aos elementos emocionais e psicológicos que influenciam o desempenho dos trabalhadores no mundo do trabalho. O psicólogo Elton Mayo foi o primeiro a fazer experiências no estudo das relações humanas no trabalho. Inicialmente realizou experimentos em uma tecelagem em 1923 nos Estados Unidos. Posteriormente fez pesquisas também em uma empresa de componentes eletrônicos em Chicago. Após todos os experimentos, Mayo constatou que as normas sociais exercem grande influência sobre as pessoas. Concluiu que algumas concessões aos empregados mostraram que as pessoas quando motivadas e tratadas com atenção agem positivamente e exercem melhor as suas tarefas.
A invenção do “escravo feliz” foi então um disfarce ideológico para tornar o trabalho menos alienante. Os instrumentos ideológicos, como o “operário padrão”, passaram a integrar o trabalho e a estrutura da empresa às necessidades sociais dos trabalhadores. A empresa faz crer que os seus interesses são coincidentes com os dos empregados[18], que por sua vez contribuem para o sucesso econômico do empreendimento. Sob esse aspecto emocional aproveitam-se das técnicas das políticas de relações humanas para manipular todas as carências afetivas dos empregados, chegando mesmo a se colocar em lugar da família do trabalhador. As equipes são apresentadas como capazes de proporcionar um novo lar para os empregados de vivência solitária, especialmente nas grandes cidades.
Esses modelos de gerenciamento de mão-de-obra, baseado nas políticas de relações humanas foram duramente criticadas por incorporarem uma sutil estratégia para envolver os empregados numa ideologia manipulatória, fazendo-os acreditar que, de fato, estão fazendo algo pela sua própria vontade. Todavia, fácil perceber que é mais uma sofisticada técnica de intensificação no processo do trabalho, para o aumento da produtividade, sem os riscos da resistência em vista da exploração. O ambiente de trabalho nesse modelo de política de relações humanas torna-se mais agradável, todavia de forma artificial. Um bom exemplo é o quadro de destaque da semana para os trabalhadores que atingem metas e que não cometem nenhuma falta. Esse quadro de destaque engana apenas por algum tempo. A foto bem feita é apresentada para todos, mas com o passar do tempo os trabalhadores descobrem que são explorados da mesma forma que a anterior, permanecendo sem a menor segurança no trabalho e sem plano de carreira que permita a ascensão na profissão.
Em busca do tempo perdido
A melhor ilustração que me vem à mente, quando penso no modo como podemos recuperar esse tempo perdido, no qual os seres humanos podiam viver felizes trabalhando, sem ter de se submeter às exigências desumanas do modo capitalista de produção, é a de uma história que meu pai me contou certa vez, e que sempre achei meio engraçada e até despropositada. Hoje, vejo o tamanho da sabedoria do trabalhador que se recusava a trabalhar no dia seguinte porque tinha de “ir ao forno”. Faço, desde já, a ressalva de que nós mineiros pensamos a vida e formulamos os nossos pontos de vista, “cientificamente”, contando causos.
A nossa família, de tradição de médios proprietários de terra, era acostumada, como todos na região em que eu nasci, no leste do estado de Minas Gerais, à exploração do trabalho dos camponeses pobres, que sempre sobreviveram dos favores dos donos das terras[19] e sem as mínimas condições de emancipação e dignidade numa sociedade violenta, ainda que dissimulada, e preconceituosa com os empobrecidos. Era tudo naturalizado, como mostra a perplexidade externada por José Lins do Rego, no livro “Menino de Engenho”, ao constatar que achávamos normal as pessoas viverem naquelas casas de barro batido, cobertas de taquara, casas úmidas e mínimas, onde as condições de insalubridade condenava-os todos a doenças terríveis e à morte precoce. Viviam como bichos e, para sobreviver, prestavam serviços aos fazendeiros, sem nenhuma exigência. Passavam a vida inteira sem se permitirem qualquer conforto ou diversão, a não ser os momentos de embriaguez com cachaça, única bebida acessível aos pobres naquele tempo.
Mas, o Zé Tichico, como era conhecido o trabalhador do meu avô, veio ao final do dia informar que não viria trabalhar no dia seguinte porque “ia ao forno”. Pretendia fazer broas de fubá na sua casa. Duas coisas fora do comum para aquela época e que por isso virou motivo de deboche; homem na cozinha e a perda de um dia de trabalho para ficar em casa fazendo quitandas. Bem, para isso, o trabalhador pediu ao meu avô um adiantamento. Precisava de meio quilo de fubá e de um ovo.
Quase morri de rir quando fiquei sabendo dessa história. Como podia alguém deixar de trabalhar um dia inteiro, pessoa necessitava que precisava tanto do dinheiro do dia? E, para se dar ao luxo de fazer a sua broa com apenas meio quilo de fubá e um ovo? Somente após estudar acerca da ideologia do trabalho pude compreender a sabedoria do Zé Tichico. O fato de perder ou não um dia de trabalho em nada mudaria a sua condição de explorado ou o seu lugar naquela sociedade desigual e sem oportunidades para os explorados. Era realmente muito mais valioso para o trabalhador, para a sua família, e para nós todos, fazer sua broa de fubá naquele dia, ainda que com ingredientes tão simples e parcos. Garantiu lazer mínimo para si mesmo, já que gostava de “ir ao forno”; manteve de pé a união da sua família em torno da mesa e contribuiu também com a nossa cultura, mantendo viva a nossa identidade de comedores de broas de fubá[20].
Hoje, às vezes, vemos os nossos interlocutores assustarem-se com essas ideias. Despertam-se para as perdas antropológicas e socioambientais causadas pela exploração desmedida da força de trabalho da população empobrecida no nosso país. João Pedro Stédile, um dos líderes do MST- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -, afirma que a pior herança deixada pelo capitalismo para os pobres foi o individualismo, pois muitas vezes pensam que podem se livrar de toda essa exploração agindo sozinhos, trabalhando muito em seu pedaço de terra, ou nos seus empregos mal remunerados. Ao contrário, defendemos um modelo de Economia Popular Solidária, que é preconizado pela Campanha Ecumênica da Fraternidade de 2010 – Economia e Vida. Independentemente de um conhecimento mais profundo da economia como ciência, observamos que a qualidade de vida das pessoas que vivem da Economia Popular Solidária é melhor. Isso podemos constatar nas famílias que se organizam nos assentamentos da reforma agrária[21], nas famílias que vivem coletivamente desenvolvendo atividades industriais[22] ou de serviço de pequeno porte. Apesar de não terem lucro, no molde capitalista, conseguem ter renda suficiente para viver com dignidade e para aproveitarem mais as suas vidas ao lado das pessoas que amam, cuidando do ambiente, da cultura, das relações familiares, da saúde e do bem estar de todos de modo geral. Mas, principalmente, por poderem trabalhar em um ambiente condizente com as necessidades humanas, sem os riscos dos terríveis acidentes que passaram a acometer os trabalhadores vítimas das novas técnicas de racionalização dos processos produtivos modernos.
Enfim, com a reflexão desenvolvida nesse texto queremos propor outras saídas para os trabalhadores fora do estrito espaço dos empregos formais, base da exploração capitalista nos últimos três séculos. Nesse modo de produção, nem o ambiente interno da produção, nem o externo, onde se vive e de onde vêm toda a matéria-prima, estão asseguradas as condições para o bem-estar dos trabalhadores. Tudo isso, apesar de tanta luta social travada desde o século XVIII em um processo dialético entre o capital e trabalho.
* Colaboração de Gilvander Moreira, frei Carmelita., para o EcoDebate, 30/09/2010
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César Torres