Com a crise da água, São Paulo chegou, literalmente, ao fundo do poço. Ou melhor, dos poços. A avidez por encontrar fontes hídricas alternativas tem multiplicado a perfuração de poços artesianos – a maioria deles, clandestinos, segundo especialistas.
Quem sofre com a escassez acusa os órgãos gestores do Estado de excesso de burocracia, que alimenta as obras ilegais.
Indústrias e comércio foram os primeiros interessados em investir em perfurações. Recentemente, condomínios de prédios e casas também saíram em busca de água subterrânea. Até a prefeitura da capital abriu licitação para contratar empresas especializadas em poços semiartesianos que deverão abastecer as 32 subprefeituras em caso de falta d’água.
Em meio à corrida pela água, chovem críticas sobre o órgão estadual gestor de recursos hídricos, o Departamente de Água e Energia Elétrica (DAEE).
“O que estamos vendo aqui em São Paulo é que todos estão saindo de uma forma predatória à procura de água. E falta um Estado presente que faça o disciplinamento do uso dessa água subterrânea”, disse à BBC Brasil o diretor do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas (Cepas) da USP, Reginaldo Bertolo.
O resultado é a clandestinidade: de acordo com a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (Abas), cerca de 80% dos poços artesianos existentes na região metropolitana de São Paulo são irregulares.
“A gente fez um confronto de dados, perguntou para as empresas que participam da associação e temos denunciado a incompetência pública na gestão do recurso hídrico. Se a estimativa é de 80% de clandestinidade, você está gerindo o quê?”, dispara Carlos Giampá, geólogo, ex-presidente da Abas e atual conselheiro vitalício da associação.
A BBC Brasil consultou o DAEE, que afirmou em nota “fiscalizar rotineiramente perfurações e captações irregulares”
Contra o relógio
O problema, dizem especialistas, é alimentado pelo tempo que leva para perfurar um poço artesiano em São Paulo – meses ou até um ano.
O primeiro passo é pedir um projeto para uma empresa perfuradora, que levará todos os detalhes dele ao DAEE. O departamento analisa e libera ou rejeita a perfuração. Esse processo normalmente demora cerca de 45 dias – mas já chegou a demorar oito meses em alguns casos, relata Giampá, que também é sócio-diretor da DH Perfuração de Poços, uma das principais empresas do ramo.
Depois disso, vem a perfuração e instalação do poço, que demora mais um mês, e a coleta da água para a análise de potabilidade pelo DAEE – mais 20 dias. Se a água for aprovada, é preciso requerer a outorga, uma espécie de autorização para utilizar aquela água por cinco anos; e, em caso de consumo humano, a inclusão em um cadastro de soluções alternativas de água potável.
Para não ter de esperar todo esse processo, o que muita gente faz é optar pela irregularidade. “Nós descobrimos que dá pra fazer um poço aqui no condomínio e vamos fazer. Mas a outorga demora muito, a gente está sem água. Chamei a empresa e eles vão vir aqui fazer”, disse à BBC um morador de um condomínio de prédios em Itu que não quis se identificar.
Lá a falta de água é generalizada e o condomínio não recebe água do abastecimento oficial da cidade há meses. Por isso, uma das soluções encontradas foi o poço artesiano – só que na clandestinidade.
Sustentabilidade
Os especialistas alertam que a ‘febre’ dos poços artesianos no Estado de São Paulo pode ter graves consequências para as reservas subterrâneas da região. Apesar da abundância de poços artesianos e da grande quantidade de água que eles oferecem, o recurso deles também é finito – ou seja, se mal explorado, também pode acabar.
Em Recife, no fim da década de 1990, a cidade enfrentou uma seca ainda maior que a que vive hoje o Estado de São Paulo e também recorreu a todos os tipos de alternativa – inclusive a perfuração desenfreada de poços. Como consequência disso, alguns reservatórios subterrâneos secaram.
“Fazendo da forma irregular, corre esse risco de secar. Lá em Recife, todos os prédios de Boa Viagem fizeram poço, isso mostra uma coisa que pode acontecer, porque fazer poço do lado do outro é uma superexploração da água subterrânea”, explicou Carlos Giampá.
Outro problema que pode ocorrer é a contaminação da água subterrânea. “O DAEE tem inúmeros testes e faz o controle de qualidade da água. Mas quando é irregular, não se sabe se essa água é potável. Às vezes o poço é feito em áreas de contaminação, principalmente por causa de posto de gasolina.”
“A gente precisa conhecer qual que é o volume que está dentro desse reservatório, quanto de água da chuva que entra dentro desse reservatório para repor e o quanto que a gente pode tirar também através de poços”, diz Bertolo.
O DAEE respondeu que “o Governo do Estado vem lançando mão de projetos mais sustentáveis para aumentar a oferta desse bem, que não a abertura de poços artesianos em residências”.
Segundo o órgão, um dos exemplos significativos é o reúso da água, em andamento, entre outros já anunciados”.
Gestão
Segundo o DAEE, a cidade de São Paulo tem 2.071 poços artesianos outorgados pelo departamento, mas as estimativas de um levantamento da Abas indicam a existência de pelo menos 8 mil poços contando a região metropolitana da cidade – mais de 5 mil irregulares.
O DAEE não quis dar entrevista para falar sobre o assunto, mas informou por meio de nota que não tem estimativas sobre o número de poços irregulares “uma vez que eles são irregulares”, mas advertiu que “a utilização da água sem a devida outorga sujeita o infrator às penas previstas na lei de uso dos recursos hídricos e de responsabilização administrativa, civil e penal”.
Para Bertolo, do Cepas, “na prática, não tem fiscalização”.
“Não há vontade política pra que o Estado se reestruture pra dar vazão pra essa demanda”, afirma. Ele considera que o DAEE precisa de técnicos mais capacitados para mapear os poços existentes em São Paulo.
“Estamos falando de um volume de água estimado em 16 metros cúbicos por segundo de todos os poços na região metropolitana, o que é praticamente o volume oferecido pelo segundo manancial que abastece São Paulo, a represa de Guarapiranga”, disse.
Matéria de Renata Mendonça, da BBC Brasil, reproduzida pelo Portal EcoDebate,
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César Torres