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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Consumismo e individualismo generalizados na sociedade brasileira.


Na opinião do economista Waldir Quadros, “o surgimento de uma nova classe média no Brasil vem sendo associado ao vigoroso processo de redução da miséria e da pobreza que ocorre desde 2004, quando tem início a fase de crescimento econômico mais robusto”. Ele concedeu a entrevista que segue à IHU On-Line por e-mail, onde ilustra o padrão de vida da chamada baixa classe média, que seria aquele “dos professores do ensino fundamental, dos balconistas do comércio, dos caixas de supermercado, dos auxiliares de enfermagem, dos auxiliares de escritório, dos trabalhadores com alguma qualificação, etc.”. Para o professor, “o consumismo e o individualismo generalizaram-se na sociedade brasileira nas últimas décadas, num quadro de enfraquecimento dos valores da cidadania, da solidariedade, da igualdade, do espírito público republicano, etc.”.

Waldir Quadros possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo – USP, e mestrado e doutorado em Ciência Econômica, pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde, atualmente, é professor associado do Instituto de Economia.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que caracteriza e como emerge a nova classe média brasileira surgida com o lulismo? Qual a importância das políticas sociais e do aumento do salário mínimo para a constituição desse novo perfil ou camada social?


Waldir Quadros - De um modo geral, o surgimento de uma nova classe média no Brasil vem sendo associado ao vigoroso processo de redução da miséria e da pobreza que ocorre desde 2004, quando tem início a fase de crescimento econômico mais robusto. Em primeiro lugar, este importante progresso social repousa fundamentalmente no próprio crescimento econômico mais expressivo, que dinamizou o mercado de trabalho e ampliou bastante as oportunidades de geração de emprego e renda. Em segundo, temos a contribuição decisiva da manutenção e avanço da recuperação do poder de compra do salário mínimo, com forte repercussão na base do mercado de trabalho, e cujo alcance foi ampliado pela expansão do emprego formal. Por outro lado, o aumento do salário mínimo também impactou significativamente nos benefícios previdenciários e sociais reforçando bastante o movimento de redução da miséria. Por fim, as políticas de transferência de renda, particularmente o programa Bolsa Família, complementam este processo ao oferecer assistência social aos segmentos mais vulneráveis e, de certa forma, à margem dos progressos ocorridos no mercado de trabalho. Em seu conjunto, estes avanços ocorridos na base da sociedade dinamizaram bastante o mercado de consumo popular, realimentando o processo e despertando o interesse das empresas e profissionais que o abastecem com mercadorias e serviços.

A estrutura social

No que diz respeito à estrutura social, os dados apontam que este duplo movimento de ampliação das oportunidades para os segmentos populares e de redução da miséria resultou basicamente no crescimento da massa trabalhadora (pobre) e da baixa classe média (remediada) . Para ilustrar, o padrão de vida desta baixa classe média é aquele dos professores do ensino fundamental, dos balconistas do comércio, dos caixas de supermercado, dos auxiliares de enfermagem, dos auxiliares de escritório, dos trabalhadores com alguma qualificação, etc. Entretanto, para o expressivo contingente de pessoas que no início deste processo já se encontravam na baixa classe média, as oportunidades de ascensão foram muito mais restritas, uma vez que a expansão da média classe média foi menos significativa e a alta classe média ficou estagnada. Em nossa avaliação, esta perda de dinamismo nos estratos melhor situados da classe média deve estar refletindo as debilidades estruturais da nossa economia, particularmente no que diz respeito aos constrangimentos que se verificam na indústria, nos serviços produtivos e no desenvolvimento científico e tecnológico de um modo geral. E estes obstáculos a um desenvolvimento mais avançado e com melhores oportunidades ao trabalho mais qualificado e melhor remunerado, em grande medida, resultam da política de juros elevados e câmbio valorizado que estimulam as importações e penalizam a produção nacional.

IHU On-Line – Já em 2008 o senhor considerava a nova classe média individualista e consumista. Mantém essa posição? Acredita que ela seja também conservadora? Em que medida o contexto social favorece um possível conservadorismo?


Waldir Quadros - O consumismo e o individualismo generalizaram-se na sociedade brasileira nas últimas décadas, num quadro de enfraquecimento dos valores da cidadania, da solidariedade, da igualdade, do espírito público republicano, etc. O conservadorismo também está profundamente arraigado em nosso meio social, porém necessita ser melhor qualificado, o que escapa um pouco do meu campo de atuação profissional. Em termos gerais, ele é identificado à manutenção de privilégios e de situações em que se tira proveito da desigualdade. Estas mazelas não estão restritas às elites e, em maior ou menor grau, afetam igualmente as camadas intermediárias e mesmo as populares. O professor André Singer recentemente ofereceu interessante contribuição a esta problemática, caracterizando o conservadorismo popular como o respeito à ordem, em que as mudanças são bem-vindas, mas devem ocorrer sem conflitos . Um outro ângulo de análise que me parece relevante diz respeito aos impactos nas camadas melhor situadas da classe média decorrentes da redução da miséria e da pobreza. Este assunto, sem dúvida, merece uma reflexão mais cuidadosa e demorada, porém um aspecto que se destaca de imediato é o mal estar provocado pelo relativo encarecimento dos serviços pessoais, particularmente o trabalho doméstico. Para muitos é igualmente perturbador o surgimento de amplos contingentes de novos consumidores em ambientes anteriormente mais seletivos, como é o caso dos aeroportos. Sem falar dos empresários que dependem de mão de obra mal remunerada para assegurar suas margens de lucro e padrão de vida diferenciado. Estes rápidos exemplos nos parecem suficientes para ilustrar as dificuldades envolvidas na promoção de avanços sociais numa sociedade que se estrutura e funciona com base na desigualdade. Envolve profunda mudança de valores e reorganização da vida das pessoas e famílias, apontando para a urgência de uma atenção especial por parte dos intelectuais, homens públicos, educadores, formuladores de políticas sociais e todos aqueles preocupados com a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

IHU On-Line – Como ficam os movimentos sociais sob a ótica dessa nova classe média que surgiu com o lulismo? Nesse novo cenário qual é o lugar do capital e do trabalho?


Waldir Quadros - Um pré-requisito fundamental para a construção de um cenário social mais promissor localiza-se na urgente reestruturação dos serviços públicos indispensáveis à vida coletiva em bases civilizadas. Estamos falando de serviços de boa qualidade e acessíveis a todos, não apenas aos pobres e necessitados, na educação, saúde, saneamento, habitação, segurança pública, cultura, lazer e entretenimento, etc. Sem esta infraestrutura social é impossível pensarmos em uma convivência democrática e norteada pela igualdade, com elevação contínua nos padrões de sociabilidade. E este me parece ser um dos campos mais férteis para o revigoramento dos movimentos sociais reivindicatórios. Porém, que requer clareza e determinação renovadas dos setores políticos e sociais identificados com estas causas. Por outro lado, é necessário atentarmos para o crucial aspecto do financiamento destas políticas sociais avançadas, o que nos remete à questão da justiça tributária e fiscal, bastante espinhosa numa sociedade profundamente marcada pela precariedade dos serviços públicos, pelo generalizado descaso do Estado para com o cidadão comum que procura atendimento e pela cultura bastante disseminada de não pagar impostos. Também aqui será necessária uma atuação firme e decidida do pensamento progressista no sentido de esclarecer todos os aspectos desta questão, afastando névoas e preconceitos ideológicos difundidos pelos influentes setores conservadores e que confundem, sobremaneira, a opinião pública. No que diz respeito especificamente às relações de trabalho, a contínua e indispensável elevação dos rendimentos reais, que complementa a oferta de serviços públicos sociais, requer que avancemos decididamente na participação dos rendimentos do trabalho na renda nacional. O que, entre outras providências, passa por condições mais favoráveis ao funcionamento dos sindicatos, à redução dos corrosivos níveis de rotatividade, ou seja, por uma regulação benéfica aos trabalhadores e prestadores de serviços. E também por avanços na reforma agrária e desenvolvimento da agricultura familiar, uma vez que parcela expressiva dos miseráveis se encontra no campo ou em ocupações agrícolas.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a questão do crédito no país hoje e como vê o caso do Banco Panamericano? O que isso significa? Que rumos podem ser desenhados no futuro a partir disso?


Waldir Quadros - Apesar dos recentes avanços no crédito ao consumo, ainda falta equacionar o aspecto das taxas de juros verdadeiramente extorsivas que oneram os consumidores e facultam lucros extraordinários aos financiadores. Progressos mais significativos ocorreram no crédito imobiliário. Porém, o crédito ao investimento e produção ainda se ressente da histórica falta de financiamento de longo prazo a taxas compatíveis. Já o caso do Banco Panamericano me parece mais relacionado com fraudes e desvios, embora não seja especialista no assunto e nem disponha de informações mais qualificadas. Em termos de futuro, e em poucas palavras, recoloca-se a urgência de implementarmos uma autêntica reforma financeira e bancária, que institua um padrão de financiamento adequado a uma economia desenvolvida em termos industriais, tecnológicos, ambientais e de serviços produtivos correlacionados.

IHU On-Line – Na sua opinião, o que deve ser feito com o pré-sal? Vendê-lo como commodity ou usá-lo para dar um salto no país?


Waldir Quadros - A forma como que o governo vem equacionando a exploração do pré-sal me parece totalmente adequada aos interesses nacionais e sociais. Assegura o controle das reservas, regula sua exploração e prevê uma gestão financeira que impede a chamada doença holandesa, em que a abundância de divisas advindas das exportações estimula importações em prejuízo da produção nacional. Particularmente, merece destaque a política de industrialização associada à exploração do petróleo, que já teve início com o incentivo à produção no país de sondas de perfuração, de navios petroleiros e de ampla gama de peças, equipamentos e serviços especializados. Da mesma forma, é altamente auspiciosa a proposta de constituição de um fundo social à altura do nosso imenso passivo nesta área. Sem dúvida, trata-se de uma rara oportunidade histórica para enfrentarmos questões estruturais, capacitando-nos a nos libertar em prazo relativamente curto das mazelas que maculam nossa sociedade e economia.

IHU On-Line – Quais são as perspectivas do lulismo? Como Dilma governará a partir desse cenário?


Waldir Quadros - O governo Dilma herdará todos os progressos conquistados no governo Lula, mas para ser bem sucedido deverá continuar avançando e enfrentar os desafios estruturais ainda não equacionados, e de certa forma abordados nas questões anteriores. Por outro lado, o cenário internacional já apresenta algumas nuvens bastante preocupantes, particularmente no que diz respeito ao crescente déficit em conta corrente. Entretanto, nossas potencialidades atuais facultam que os problemas sejam solucionados na perspectiva do desenvolvimento econômico e social. É verdade que os obstáculos não são nada triviais e exigirão a combinação de lucidez, tenacidade, coragem e determinação para serem enfrentados a contento. Além daquilo que já discutimos, merece acrescentar a urgência de uma profunda reforma administrativa em todas as instâncias governamentais e federativas, que construa padrões de eficiência estatal compatíveis com as necessidades operacionais das várias frentes de atuação, tanto no âmbito econômico como social. Tal providência é particularmente vital nas áreas sociais, que, maltratadas pelo regime militar, foram profundamente dilapidadas pela estagnação dos anos 1980 e pela nefasta orientação neoliberal que se instaura nos anos 1990. Por outro lado, nos parece evidente ser necessária uma abordagem ousada e criativa, que rompa com paradigmas tornados obsoletos pelo rebaixamento generalizado dos padrões éticos e de comprometimento com o interesse público. Por tudo que conhecemos da nova presidente, e diante dos primeiros pronunciamentos após sua eleição, podemos confiar que estará à altura destes desafios e possibilidades.
(Ecodebate, 03/12/2010) Entrevista realizada por Graziela Wolfart e publicada pelo IHU On-line

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