Não é mais possível alimentar 1 bilhão de pessoas apenas com ações de socorro emergenciais [Valor Econômico] Em diferentes pontos do planeta, o destino de um bilhão de seres humanos depende de respostas concretas à pergunta que lateja neste 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação: como ampliar a segurança alimentar em época de crise?
Na América Latina, o chamado Corredor Seco da Guatemala é um dos cenários onde pulsa a angústia da espera. A região sucumbe sob urgências humanitárias agravadas por desequilíbrios climáticos extremos. O El Niño trouxe precipitações até 87% abaixo da média anual em algumas áreas de lavoura gerando quebras de safra que tiveram um efeito devastador na dieta básica de mais de 90 mil famílias. A seca piora a insegurança alimentar em um país onde a desnutrição crônica afeta 49% das crianças (69% no caso das indígenas).
Com uma arrecadação fiscal abaixo da já modesta média latino-americana e sofrendo as consequências da crise internacional – entre outras coisas ela reduz as remessas dos emigrantes, equivalentes a 10% do PIB do país- a Guatemala não tem condições de enfrentar a urgência da crise sem solidariedade externa.
A crise na Guatemala é um microcosmo dos dilemas da fome no século XXI. O passaporte para a segurança alimentar não virá encapsulado em nenhuma panaceia fabricada em laboratórios ou gabinetes do dogmatismo econômico. Ela depende, antes de mais nada, de iniciativas articuladas no plano local e internacional que contemplem, em primeiro lugar, a criação de mecanismos de resposta rápida a crises alimentares, cada vez mais agravadas pela sobreposição de eventos climáticos extremos. Mas, sobretudo, é necessário um novo consenso político e fiscal que forneça ao Estado o fôlego tributário indispensável à execução de políticas de desenvolvimento social. E, acima de tudo, que devolva ao desenvolvimento agrícola a centralidade no esforço de erradicação da fome. Definitivamente, não bastam afirmações exclamativas.
O mundo da política precisa erguer uma ponte efetiva de recursos à altura dos desafios cobrados pelo fomento agrícola e o combate à fome. No plano internacional, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) projeta a necessidade de investimentos agrícolas da ordem de US$ 83 bilhões por ano em todo o planeta, para obter um aumento de produção de 70% e assim alimentar a humanidade que reunirá 9,1 bilhões de pessoas em 2050. Trata-se, entre outras coisas, de reverter a omissão predominante nos últimos anos quando se delegou aos mercados a tarefa de prover a segurança alimentar da sociedade.
A verdade é que os investimentos na agricultura perderam espaço na própria repartição dos recursos internacionais destinados à luta contra a fome nas últimas décadas. Desde 1980 a fatia reservada ao desenvolvimento agrícola diminuiu 58% em termos reais, recuando de 17% para 3% do total das transferências. A crise mundial sentenciou a inviabilidade dessa aritmética. Não é mais possível alimentar 1 bilhão de pessoas apenas com ações de socorro emergenciais. Ainda que essa seja a única saída de momento, a centralidade do processo deve ser devolvida ao apoio à produção agrícola dos países pobres e em desenvolvimento.
De novo, o caso da Guatemala é pedagógico: o país tem uma lei de segurança alimentar, mas, sem financiamento, sua eficácia é limitada. A busca pela ajuda internacional foi um dos motivos que levou o presidente Álvaro Colom a decretar o estado de calamidade pública no mês passado. Em discurso na Assembleia Geral da ONU, Colom acrescentou que a calamidade não era resultado apenas da seca, mas uma calamidade histórica, fruto do abandono secular de populações pobres a sua própria sorte. Infelizmente, a Guatemala não é um caso isolado. A fragilidade das políticas públicas na região é proporcional ao engessamento proveniente de uma carga tributária média de 18,2% do PIB, contra 39,8% da União Europeia. Pior, mais de 50% da arrecadação regional é baseada em impostos indiretos, pagos de forma linear por toda população que tem efeito redistributivo nulo ou regressivo.
Em comparação, na União Europeia, cerca de 40% da arrecadação provêm de impostos diretos e o restante se divide entre impostos indiretos e segurança social. Na maioria dos países a situação só se resolve como uma reforma tributária: os ricos dos países pobres e em desenvolvimento também precisam dar sua contribuição para o desenvolvimento inclusivo da sociedade. No entanto, enquanto não se consegue um acordo político para um novo pacto fiscal que permita aumentar a arrecadação e torná-la mais equitativa, o espaço das políticas públicas permanece acanhado. Isso traduz-se diretamente em exclusão social e baixo desenvolvimento humano. Na Guatemala, um dado resume todos os demais: o gasto social do país de US$ 350 per capita/ano é o menor de toda a América Latina. Em contraposição, os índices globais de desnutrição no país são os maiores da região.
O Brasil é um caso notável de sucesso ancorado nessa convergência entre vontade política, marcos institucionais específicos e recursos adequados ao desenvolvimento agrícola e à segurança alimentar. A partir do Fome Zero, o governo brasileiro adotou o enfoque de dupla via recomendado pela FAO. Ações emergenciais foram acionadas em paralelo a políticas emancipatórias para que as famílias – em especial as que formam a pobreza rural, onde se concentra 50% da fome no país – pudessem se credenciar à auto-suficiência no futuro. A assistência técnica à agricultura familiar e aos assentamentos, as aquisições de alimentos dos pequenos produtores, bem como a expansão do crédito do Pronaf são exemplos desse modelo a ser multiplicado. Em que pese a persistente concentração da terra no país, como se verificou no último Censo agrícola do IBGE, o fato é que um segmento de média e pequena propriedade consolidou sua presença na economia, como principal fonte de alimentos, emprego e estabilidade no campo. Não surpreende, assim, que o mercado interno brasileiro tenha se revelado um importante contrapeso à contração mundial nesta crise, sustentando o nível de atividade graças à demanda popular.
O paradigma brasileiro oferece uma resposta encorajadora ao desafio de garantir a segurança alimentar em época de crise. Ocupará, por certo, um espaço relevante nas discussões da Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar, que acontece de 16 a 18 de novembro, em Roma. *José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe. ** Artigo originalmente publicado no Valor Econômico.
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César Torres