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terça-feira, 8 de março de 2011

São Paulo: Uma cidade doente e dependente de petróleo


Poluição em São Paulo

Com 4 mil mortes por ano causadas pela poluição, São Paulo precisa reduzir com urgência a quantidade de veículos nas ruas, em benefício da saúde pública, afirmam especialistas em seminário realizado na Faculdade de Medicina

O Dia Mundial sem Carro, iniciativa global que incentiva as pessoas a deixar o automóvel na garagem e locomover-se pela cidade a pé, de bicicleta ou no transporte coletivo, não teve lá muita adesão em São Paulo. Na data (dia 22, terça-feira), a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) registrou 71 quilômetros de congestionamento às 8 horas (dentro da média) e 117 quilômetros às 18h40, índice um pouco acima da média do horário. Choveu, é verdade, o que talvez tenha desestimulado alguns potenciais participantes da campanha. De resto, São Paulo não foi incluída na lista oficial das cidades integrantes do evento no mundo, até porque não houve apoio formal da Prefeitura.

Para quem pesquisa a relação entre poluição e saúde pública, entretanto, está mais do que na hora de a capital tomar medidas concretas para reduzir o número de carros nas ruas – e não apenas por um dia. Enquanto 62% da poluição aérea, em média, nas cidades grandes se deve à queima de combustível dos veículos, esse índice chega a 90% em São Paulo. “Hoje existem 6.704 trabalhos dizendo que a poluição do ar faz mal”, revela o professor Paulo Saldiva, chefe do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da USP. “Quantas pessoas morrem em São Paulo por causa disso? De acordo com os melhores modelos estatísticos, em torno de 4 mil por ano.” Saldiva foi um dos participantes do seminário O Impacto da Poluição na Saúde Pública, organizado pelo Movimento Nossa São Paulo e outras entidades promotoras do Dia Mundial sem Carro e realizado no dia 21 de setembro no teatro da Faculdade de Medicina da USP.Outro participante do seminário, Antonio Carlos Chagas, médico do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, afirma que, na nova visão dos médicos em relação aos fatores de risco para as doenças cardiovasculares – maior causa de morte no Brasil –, a poluição do ar foi acrescentada a uma lista que já incluía hipertensão, níveis de colesterol etc. Nas últimas décadas, por sinal, as mulheres vêm sendo cada vez mais vitimadas por essas doenças, responsáveis por 35,2% das mortes de pessoas do sexo feminino entre 35 e 74 anos. É o oitavo maior índice do mundo – entre os homens, o Brasil ocupa o décimo primeiro lugar, com uma proporção de 30,3%.



Transporte público contra carros particulares: maior frota de veículos do mundo é a principal fonte de poluição do ar paulistano“Intoxicação neuronal” – Se a cidade de São Paulo, com seus 6,5 milhões de veículos – a maior frota municipal do mundo –, fosse um organismo humano, teria várias doenças. Vejamos o diagnóstico, nas palavras do médico Paulo Saldiva: “Primeiro, o agente principal é a dependência física de uma droga chamada petróleo. A cidade, hoje, vive às custas de carro. Em consequência, tem febre, porque está esquentando. Tem obstrução das vias aéreas por poluentes. Tem obstrução arterial difusa por congestionamentos intermináveis. Tem diabetes melito porque usa energia de forma ineficiente, e insuficiência renal, porque não joga os detritos adequadamente. Tem obesidade, porque cresce mais do que pode. Tem um pouco de flatulência porque de vez em quando são provocados ventos fortes e tufões. Tem edema nas enchentes e inundações. E impotência, precisamos confessar, frente à situação. Finalmente, intoxicação neuronal, que causa confusão mental, porque a gente sabe o que tem que ser feito e não faz, possivelmente porque alguns dos neurônios que nos dirigem estão intoxicados.” Para o médico, se o quadro de doença da cidade já é conhecido, a medicação também está clara. Por que, então, ela não é adotada?

“Todo mundo sabe o que é preciso fazer, mas a ação não progride porque existem conflitos importantes”, assinala Saldiva – ciclista inveterado, para quem todo dia já é sem carro há muito tempo. Para o professor e outros participantes do seminário, os conflitos com os poderosos interesses das grandes empresas fabricantes de automóveis e produtoras de combustíveis estão na raiz dos problemas


Saldiva no seminário na Faculdade de Medicina: São Paulo está doenteOcorre que, do jeito que a coisa vai, disse o médico, não há mais espaço para esse modelo de cidade em que São Paulo se transformou. “Seríamos como os Jetsons, mas acabamos como Blade Runner”, comparou, lembrando o antigo desenho animado e o filme dos anos 80. O mais irônico – tristemente irônico, diga-se – é que o automóvel está consagrando a autoimobilidade. A velocidade média de um carro na hora do rush na cidade é de 9,7 quilômetros por hora, contra 15 km/h de quem se locomove de bicicleta e 5 km/h de quem anda a pé. “Se os bandeirantes chegassem com suas mulas na São Paulo do século 21, é provável que fizessem uma viagem do centro da cidade para Santo Amaro às 6 da tarde mais rapidamente do que os motoristas. Estamos poluindo no século 21 com uma mobilidade de século 18”, lamentou o médico.

Desigualdade – Paulo Saldiva foi um dos especialistas do mundo inteiro convidados a participar de uma reunião da Associação Médica Mundial, em Copenhagen, no início de setembro, para discutir como apresentar o tema saúde e meio ambiente na Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 15, que ocorrerá na capital dinamarquesa em dezembro. “A poluição do ar e o aquecimento global, notadamente nas cidades, serão o maior problema de saúde pública do século 21”, afirmou, referindo-se a um dos consensos do encontro.

Para o médico, são cinco as plataformas de atuação: a primeira é o esclarecimento pleno dos efeitos da poluição do ar e do papel dos veículos nela. “Um paciente deve saber que tudo o que ele fizer do ponto de vista da sustentabilidade vai reverter em termos de saúde. Se ele andar mais, por exemplo, reduzirá o risco para doenças como osteoporose, obesidade e doenças cardiovasculares”, diz. O segundo ponto é colocar claramente a noção de limites para produção e consumo de energia.

Ter parâmetros éticos é fundamental, aponta o médico, porque não se pode aceitar a desigualdade socioambiental: quem mais vai sofrer os efeitos das mudanças climáticas é quem menos contribui para elas. As regiões que mais passarão por processos de desertificação – a África e o Nordeste do Brasil, por exemplo – são as menos industrializadas. No Estado de São Paulo, as maiores taxas de internações e mortes por doenças respiratórias coincidem com as áreas de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais alto, demonstrou no seminário a médica Vera Lucia Allegro, gerente de Vigilância em Saúde Ambiental da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo


“Devemos trabalhar com a litigância”, diz Saldiva, referindo-se ao quarto ponto. “Temos que discutir mecanismos para que as empresas trabalhem de forma a poluir menos.” No seminário, palestrantes lembraram que a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os automóveis no Brasil foi concedida sem nenhuma contrapartida ambiental. A quinta plataforma é a da coragem, pondera o médico. “Coragem porque vai existir um debate que não será só no campo das ideias e terá inclusive muitas informações errôneas dadas como cortina de fumaça.”

Qualidade – As megaempresas do ramo automobilístico e petroleiro acaso são conglomerados globais cujo poder não se pode confrontar? Em muitos países, há quem ache que não, e alguns combates vêm sendo travados. A litigância está aparecendo na forma de restrições à circulação de automóveis particulares, como rodízios, pedágios urbanos e impostos crescentes para veículos mais antigos, o que incentiva o consumidor a adquirir outro mais novo e, consequentemente, menos poluente. Legislações mais restritivas e maior fiscalização ajudam a apertar o cerco.

Medidas como essas, claro, vêm acompanhadas do investimento governamental em transporte público de qualidade e da conscientização dos cidadãos de que suas ações individuais podem melhorar a vida de todos. “Se uma pessoa deixar o carro em casa uma vez por semana por um ano, a emissão de gás carbônico evitada é equivalente ao que 20 árvores absorvem em seu crescimento durante o mesmo ano”, apontou no seminário o presidente do Instituto Akatu para o Consumo Consciente, Helio Mattar.

As mesmas empresas, por sinal, têm comportamento diferente de acordo com as exigências dos governos e dos cidadãos nos vários países em que atuam. Um exemplo? As montadoras, que fabricam em seus países de origem modelos que emitem quantidades cada vez mais reduzidas de gases poluentes e de efeito estufa, mas não adotam os mesmos parâmetros nas unidades brasileiras.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) fez uma pesquisa com 11 montadoras de carros instaladas no País para avaliar a eficiência energética e as emissões de gases poluentes e de efeito estufa em seus veículos. Um questionário foi enviado a cada uma. As informações também foram procuradas em pesquisa de campo, serviços de atendimento ao cliente (SAC), nos sites das empresas na internet e nos manuais do fabricante. “Nenhuma montadora respondeu ao questionário”, disse no seminário na Faculdade de Medicina a coordenadora executiva do Idec, Lisa Gunn. Os sites também não traziam informações a respeito e tampouco houve sucesso nos SACs, tanto telefônico quanto on-line.



Os resultados e a análise do levantamento estão na edição de setembro da revista do Idec (disponível na internet no endereço www.idec.org.br), que pontua: “O silêncio e a desinformação imperam no mundo dos automóveis”. Entretanto, os websites das empresas nos países de origem apresentam informações muito mais detalhadas. “Há inclusive, em alguns casos, ferramentas que calculam os índices de emissão segundo o estilo de condução do motorista”, acrescenta o texto. Será que os seres humanos do lado de lá valem mais do que os do lado de cá?

A discussão pode ser estendida para outras áreas, como a da qualidade dos combustíveis. O seminário marcou a assinatura de uma Carta Aberta ao presidente Lula, aos senadores e aos ministros do governo brasileiro, na qual se pede que não seja permitida a comercialização de veículos de passeio a diesel no Brasil, conforme projeto que tramita na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. O principal problema do diesel brasileiro, aponta o texto, é a quantidade altíssima de enxofre, que tem concentração de 500 ppm (partes por milhão) nas grandes cidades, e 1.800 ppm no interior. Na Europa, a concentração é de 10 ppm. Entre outros males, o enxofre é cancerígeno.

Menos fuligem, menos doenças
Diminuir a quantidade das partículas de fumaça conhecidas como MP10 – aquelas menores de 10 micra, que entram no pulmão profundamente – ajuda a reduzir os efeitos nocivos da poluição do ar na saúde. Em São Paulo, a redução da presença dessas partículas no período entre 1993-97 a 2005 foi sentida na queda de 34,6% nas internações de crianças e 45,7% nas mortes de idosos atribuíveis à poluição, de acordo com dados apresentados pela médica Vera Lucia Allegro, da Secretaria Municipal de Saúde.

A continuidade de avanços como esse está ameaçada pelo freio ao Programa de Controle de Emissões de Gases Veiculares (Proconve), criado em 1986. O Proconve foi formatado com base no modelo americano de redução de emissões. O professor Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da USP, atribui ao programa – aliado à melhoria da qualidade dos combustíveis – parte da redução da presença de poluentes como material particulado e monóxido de carbono no ar da cidade. Outra parte se deve à mudança do perfil econômico da capital, com a menor quantidade de indústrias e mais empresas do setor de serviços.

Para que a poluição seja ainda mais reduzida, diminuindo os gastos públicos em saúde com internações, além das perdas de várias ordens, o Proconve deveria ter entrado em sua sexta fase no início deste ano. A resolução 315 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabelecia redução dos níveis de enxofre no diesel para 50 ppm a partir de 1º de janeiro. Porém, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) não regulamentou a resolução a tempo de implementá-la. De acordo com a Carta Aberta das entidades organizadoras do Dia Mundial sem Carro, criou-se “uma situação absurda que levou a Petrobras a não disponibilizar o combustível com as características necessárias requeridas para o controle da emissão e, consequentemente, as montadoras de veículos comerciais não cumpriram a legislação ambiental”.

O resultado “desse descompromisso com a saúde e a qualidade de vida da população”, segue o texto, “trouxe o assunto para a esfera do Ministério Público, que negociou um acordo envolvendo a Petrobras, as montadoras e a Cetesb Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), adiando por quatro anos a adoção de limites de emissão de poluentes mais reduzidos e a disponibilização de combustível mais limpo em volumes adequados”.

As entidades encaminharam à procuradora federal Ana Cristina Bandeira Lins, encarregada do processo de acordo, um pedido de informações quanto à improbidade administrativa de agentes da ANP ao programa de fiscalização de emissões e às obrigações assumidas pela Petrobras e pelos fabricantes de veículos. Assinam o documento entidades como o Idec, os Amigos da Terra, o Greenpeace, o Movimento Nossa São Paulo e o Instituto Ethos.

Além do pedido de informações à procuradora e da Carta Aberta ao presidente e ao Senado, outros documentos foram apresentados e lidos no seminário O Impacto da Poluição na Saúde Pública. A íntegra dos textos está no site do Movimento Nossa São Paulo: www.nossasaopaulo.org.br.

“Há preconceito contra o transporte público”
Para o secretário municipal do Verde e Meio Ambiente de São Paulo, Eduardo Jorge, “não existe medicamento heroico nem solução única quanto aos efeitos da poluição do ar na saúde pública”. Assim como uma pessoa hipertensa recorre a vários métodos – como dieta, medicamentos e exercícios –, compara, uma cidade precisa adotar um conjunto de medidas, entre elas, a inspeção veicular. “Países que têm inspeção veicular há muito tempo mostram que essa atividade, quando bem efetuada, consegue afastar de 25% a 30% o risco à saúde”, disse Jorge no seminário O Impacto da Poluição na Saúde Pública, na Faculdade de Medicina da USP.

Esse e outros recursos não têm sido usados maciçamente no Brasil por vários motivos, afirmou, entre eles, o fato de que setores poderosos da indústria e da economia “não querem ser incomodados com regulações”.

Em São Paulo, a inspeção cobrirá 100% da frota a partir do ano que vem. A empresa responsável, que hoje tem 16 postos na cidade, deverá ter 30. “Há reclamações, algumas com razão, porque fazer a inspeção, depois providenciar reparos numa oficina, tudo isso causa problemas e complica a vida. Mas mais grave ainda é não haver inspeção em Guarulhos, Santo André, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre etc.” Para o secretário, há críticas de boa e de má fé. “Há grandes interesses econômicos que misturam as coisas para criar confusão na opinião pública e intimidar as autoridades.”

Investimento maciço em transporte coletivo é outra medida que auxilia na melhoria da vida nas cidades – trens e metrô ajudam a desafogar o trânsito e são várias vezes menos poluentes do que os automóveis. Porém, em São Paulo, a frota de ônibus foi reduzida de 41.876 em janeiro para 41.628 em junho deste ano, de acordo com dados do Detran. “Bilhões de reais que poderiam melhorar imediatamente o transporte público serão gastos em túneis, novas pistas e avenidas – e ampliação de antigas –, que em pouco tempo estarão entupidas (800 novos carros entram por dia nas ruas de São Paulo)”, diz a carta divulgada pelo coletivo de Mobilização do Dia Mundial sem Carro.

Para o secretário Eduardo Jorge, o pedágio urbano é outra medida urgente e necessária para a cidade. “Não existe no mundo inteiro possibilidade de equacionar a eficiência energética e a expansão do transporte coletivo no nível de qualidade e quantidade que a gente precisa sem o pedágio urbano”, defende, ressalvando que essa é sua opinião como cidadão, uma vez que o prefeito Gilberto Kassab já se manifestou contra a ideia. “Nós precisamos de mais recursos. De onde vamos tirar? Da saúde, da educação, da habitação, da recolocação do trabalhador desempregado? Não é justo. É preciso, pelo princípio do poluidor-pagador, que quem usa o carro financie com esse recurso adicional a expansão do sistema na velocidade e qualidade que nós precisamos. Tem sido assim em cidades da Europa e da Ásia e no Brasil não vai ser diferente”, afirmou Jorge. Em São Paulo, disse, utilizam o automóvel particular cerca de 35% da população, incluindo os mais ricos, a classe média e trabalhadores especializados.

Para o secretário, “há preconceito contra o sistema público de transporte no setor da classe média e rica que mora no centro e no centro expandido”. “Dá para usar sim”, disse Eduardo Jorge, morador da Vila Mariana, usuário e defensor ferrenho do Metrô.

Reportagem de PAULO HEBMÜLLER, no Jornal da USP, publicada pelo EcoDebate

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César Torres

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