“A COVID-19 é um exemplo a mais de nossa relação tóxica com a natureza”. Entrevista com Pedro Jordano IHU
Pedro Jordano (Córdoba, 1957) vive a pandemia do SARS–COVID–2 perplexo pelo alcance que está tendo. Como biólogo, constata como estamos desarmados diante do desconhecido. A biodiversidade dos coronavírus é enorme e este (que gera a doença COVID–19) é novo para nós, do mesmo modo que são novas as 18.000 espécies de organismos superiores (plantas, animais…) para as quais damos nome, a cada ano, no planeta.
“Ainda desconhecemos muito da biodiversidade da Terra. Os micro-organismos e vírus estão na fronteira do desconhecido”, destaca o pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC [Espanha]. Em ecologia, trabalha com modelos de propagação e dispersão que são a base da dinâmica de infecção e contágio que estamos vivendo.
“O que os modelos de redes complexas nos ensinam é que a limitação de contatos e mobilidade é chave para manter o contágio dentro dos limites controláveis. A pandemia é imparável acima de um limite mínimo do que tecnicamente se conhece como percolação. Por isso, é muito importante insistir em que permaneçamos em casa”, adverte o também professor da Universidade de Sevilha.
A entrevista é de Javier López Rejas, publicada por El Cultural, 24-03-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que mais chamou a sua atenção a respeito do comportamento deste coronavírus?
A infecção foi muito rápida, provavelmente porque avaliamos mal a proporção real de portadores (a prevalência do vírus) e porque demoramos em reagir estabelecendo as restrições de mobilidade. A essência de um organismo como o SARS–COV–2 é o crescimento exponencial. A melhor forma de interromper um crescimento exponencial é começar muito cedo. Somente um dia de antecipação na ação de contenção pode representar 40% de redução. É a magia das dinâmicas, que obedecem a leis matemáticas bem estabelecidas. Ignorá-las é para insensatos ou pessoas muito, mas muito desinformadas. O comportamento do coronavírus foi e é uma lição do potencial de dispersão no mundo.
O que falhou em sua opinião?
O que ocorreu – e continua ocorrendo, por exemplo, no Brasil, México, Reino Unido, e até alguns dias atrás nos Estados Unidos, mas antes na Espanha, Itália e em grande parte da União Europeia – é que ficamos muito tranquilos ancorados na fase inicial do crescimento exponencial, onde o número de casos parecia progredir lentamente. Mas a dinâmica exponencial é perversa: se você começa com dois casos e seu número dobra a cada semana, terá uns 1.000 após dez semanas; mas ao final de outras dez semanas, já terá um milhão de casos.
Intuitivamente, temos muita dificuldade em considerar esses detalhes e não somos conscientes do que acarretam em termos de expansão de uma doença. Se cada um de nós reduz seu R0 (taxa de contágio potencial) a menos de 1, ou seja, o número de pessoas que cada um de nós poderia infectar se desenvolvêssemos a COVID–19, conseguiríamos achatar a curva de contágio. Isso aconteceu em Hong Kong, por exemplo, onde nos demonstraram muito claramente que uma dinâmica exponencial pode ser freada.
Sem sairmos da China, onde estaria a origem da pandemia? Pode ser uma transferência de um animal (morcego ou similar) para humanos?
Por trás desses tipos de doenças emergentes está a ação humana. As infecções por patógenos são processos ambientais, ocorrem nos ecossistemas como consequência das interações entre espécies. Se alteramos estas dinâmicas, teremos consequências como as que vivemos agora. A maior parte das epidemias e pandemias recentes (HIV, Ebola, SARS, West Nile, a doença de Lyme, Hendra, Nipah, etc.) tem uma clara base ambiental e de alteração de processos naturais. É o que conhecemos por “ecologia da doença”.
O acesso em grande escala a fontes de alimentação baseadas em animais silvestres e a enorme expansão do comércio de fauna silvestre (não só para consumo, também como animais de estimação, etc.) abre as portas, segundo Jordano, membro do jurado do ‘Prêmio Fundação BBVA Fronteiras do Conhecimento’ de Ecologia e Biologia da Conservação, para expor o nosso organismo a novos patógenos.
“Também o contato de animais domésticos com a fauna selvagem, que causa transmissão nas duas direções”, explica.
“As doenças emergentes nos últimos 30-40 anos estiveram ligadas a alterações de habitats naturais, suburbanização, superpopulação em áreas silvestres e avanço de áreas urbanas em áreas selvagens. Estas condições favorecem ‘saltos’ de espécies silvestres – meros portadores – para humanos. Se a isso acrescentamos a facilidade de dispersão em um mundo globalizado, com transporte aéreo e marítimo, tráfico de animais extensivo e taxas de desmatamento e alteração do meio natural devastadoras, as condições para uma pandemia generalizada estão dadas”.
É uma doença zoonótica a mais (procedente dos animais) ou tem alguma característica especial?
O SARS–COV–2 e seu efeito, COVID–19, é um grande desconhecido. Geneticamente está relacionado com o SARS–COV de 2003, mas a doença que causa e sua dinâmica é muito diferente. O SARS–COV foi mais mortal, mas muito menos infeccioso que o SARS–COV–2, e não houve novos surtos da SARS no mundo, desde 2003. No momento, parece se comportar de forma similar a outros coronavírus, mas não posso opinar com conhecimento.
A maior parte destas pandemias são de base zoonótica e no caso do SARS–COV–2 muito possivelmente também, ainda que isso precisa ser comprovado. Por exemplo, a doença de Lyme (uma borreliose) no leste dos Estados Unidos está associada à alteração das matas e à sobrecaça de grandes predadores (lobos, raposas, águias e corujas) e ao crescimento de populações de roedores, que são reservatórios da bactéria.
Jim Robbins, do New York Times, insistia recentemente em um artigo no protagonismo da “ecologia da doença”…
Quando alteramos a biodiversidade de ecossistemas naturais derrubamos barreiras para a expansão destes patógenos e, por nossa sociedade hiperconectada, estendemos pontes muito efetivas para a propagação de doenças que, de outro modo, se manteriam em seus reservatórios naturais. Há muito poucas espécies que atuam como reservatórios. A maior parte de nossa biodiversidade não abriga patógenos que acarretem perigo neste sentido.
Como Robbins, acredita que as epidemias “não ocorrem”, mas, ao contrário, são “o resultado do que o ser humano faz com a natureza”?
Claro que sim. Talvez não em todos os casos de doenças patogênicas em humanos, mas na maior parte das epidemias e pandemias que vimos emergir nos últimos 30-40 anos.
Como nossa atividade social e econômica influencia nessa alteração da paisagem?
Há múltiplas formas. Talvez a mais ampla é que a alteração da paisagem pelos humanos cria zonas de contato onde se dão características que favorecem a expansão de patógenos. Há vários exemplos disso, como o da borreliose, que mencionei, ou a expansão da malária em áreas desmatadas, onde a abertura e o clarão na mata favorecem a expansão de mosquitos vetores da doença. Além da alteração dos habitats naturais, existem outros efeitos como o aumento da sobrecaça de animais silvestres (e seu consumo ou tráfico para comércio).
Os médicos e os epidemiólogos deveriam se associar aos veterinários e biólogos para encontrar uma solução, para que não volte a ocorrer uma pandemia como essa?
Isso já está acontecendo, com colaborações muito transversais entre o âmbito de saúde, veterinários da vida silvestre, biólogos, matemáticos e físicos (que exploram modelos de propagação e contágio), etc. Há várias iniciativas em escala mundial, entre as quais se destaca a Iniciativa OneHealth, da qual participam mais de 600 especialistas de diferentes âmbitos científicos de todo o mundo. Ou também o projeto PREDICT…
Jordano considera que tanto o projeto PREDICT, como a Iniciativa OneHealth, são muito necessários porque identificam a via pela qual nossas pesquisas futuras deveriam caminhar: estudos interdisciplinares que nos permitam conhecer melhor estes ramos ambientais de doenças que podem ser devastadoras para a humanidade.
“Portanto – compreende – é necessário sair dos laboratórios para entender a ecologia da doença”.
PREDICT e EcoHealth se dedicam a pesquisar a biodiversidade de vírus na fauna silvestre, enfocando grupos concretos como morcegos, roedores, primatas e aves.
“Seria necessário ampliar sua ação – reivindica -, apoiando estas iniciativas cujo objetivo é identificar esses ‘pontos quentes’ de alto risco, onde a ação humana se desfez dessas barreiras naturais. Já conseguiram muito: uma ação coordenada em mais de 20 países para a detecção precoce de surtos de vírus e outros emergentes”.
Considera urgente a criação de um catálogo de vírus potencialmente perigosos?
Sim. É muito urgente conhecer melhor nossa biodiversidade em escala mundial. Estimamos que conhecemos apenas 1% dos vírus dos animais silvestres. Temos um desconhecimento espetacular. A exploração da biodiversidade terrestre é uma das grandes fronteiras do conhecimento humano, assim como é a exploração do Universo.
Pode ter efeitos positivos para os ecossistemas esta paralisação industrial e econômica?
Uma paralisação ou desaceleração da economia obviamente significa uma menor pressão sobre o meio ambiente, e há múltiplos indicadores (qualidade do ar, emissões, etc.) que mostram tal efeito positivo. Sendo assim, deveria se manter a longo prazo. Gostaria que uma crise deste tipo nos ensinasse a nos relacionar melhor com a natureza, como conhecê-la com maior profundidade e como delinear formas de uso de seus enormes recursos de uma maneira realmente sustentável para a saúde humana.
A COVID–19 é um exemplo a mais de nossa relação tóxica com a natureza e deve nos servir para delinear formas mais amigáveis de viver neste planeta.
(EcoDebate, 26/03/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.