Ensaio de Harald Welzer, no Der Spiegel – Os alemães querem acabar com a energia nuclear e buscar e energia renovável, mas continuam comprando SUVs. As emissões globais de carbono e o consumo de petróleo aumentaram drasticamente durante as duas últimas décadas ambientalmente conscientes – e as tendências continuarão enquanto os ocidentais continuarem a descobrir novas “necessidades”.
Desde o anúncio da nova redução nuclear da Alemanha e de sua revolução energética vindoura, um fantasma vem assombrando o país. Ele se chama “eco-ditadura”. As pessoas que nos alertam contra seus perigos, ironicamente, não são conhecidas como defensoras passionais do processo democrático.
Liderando o caminho está o dinossauro da indústria Jürgen Grossmann e seu leal assistente na frente energética Fritz Vahrenholt, ambos altos executivos da grande companhia energética alemã RWE. Num artigo recente no jornal alemão “Die Welt”, Vahrenholt criticou o que ele chama de “jacobinismo” ambiental e fez referência indireta ao artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ele argumentou que a revolução energética demandaria dos alemães o “mais alto idealismo, altruísmo e disposição para fazer sacrifícios”, que “não pode ser atingido por meios democráticos”. Por que, perguntou Vahrenholt retoricamente, “as pessoas do mundo todo deveriam renunciar a suas demandas de bem-estar material e segurança?”
De fato, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz: “todos têm o direito de ter um padrão de vida adequado para a saúde e o bem-estar de si mesmos e suas famílias, incluindo alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e serviços sociais necessários, e o direito à segurança no caso de desemprego, doença, incapacidade, viuvez, velhice ou falta de meio de sobrevivência em circunstâncias além do seu controle”. Isso levanta duas questões que Vahrenholt presumivelmente não tinha em mente. Primeiro, o que é um padrão adequado de vida de acordo com padrões universais de direitos humanos? E segundo, como seria se fôssemos “padronizados mundialmente?
Reinterpretando o artigo 25
Quando a Assembleia Geral da ONU ratificou o artigo 25 em 10 de dezembro de 1948, é quase certo que não tinha em mente o direito humano a um padrão de vida que considera normal o direito de uma família a quatro férias por ano, três carros e um desperdício de comida diário. Na verdade, a maior “disponibilidade para fazer sacrifícios” entre as elites alemãs de hoje consiste provavelmente em concordar em esperar 12 meses pela entrega de um Porsche Cayenne.
Por algum motivo todo mundo parece querer ridicularizar o aquecimento global dirigindo SUVs. As vendas de SUVs não estão apenas estourando entre os chineses, que tendem a não se entusiasmar muito em relação à proteção do meio ambiente, mas também entre os alemães, que compraram 20% mais SUVs no último ano do que em 2009, para que possam correr pelo centro das cidades e amedrontar os corações de crianças e ciclistas. Ao comprar esses bebedores de gasolina, os consumidores contribuem significativamente para um dado medido em 2010 e pouco noticiado: o maior uso de energia da história da humanidade. O consumo global de energia aumentou 5,6% em 2010, enquanto as emissões que afetam o clima cresceram 5,8%.
Esta é uma reviravolta energética? Dificilmente. Apesar de Kyoto, Copenhague e Cancun, o consumo de energia e as emissões aumentam a cada ano. Com apenas uma breve interrupção durante a crise econômica global, o ser humano continua acelerando a degradação dos recursos e a destruição do planeta e de sua atmosfera. As emissões mundiais de gases de efeito estufa quase dobraram nas últimas duas décadas, e levará apenas uma década para que elas dobrem novamente, assumindo que a sede por energia das economias industrializadas e emergentes continue a crescer tão rápido quanto está crescendo hoje. De acordo com prognósticos atuais, o consumo de petróleo – que responde por um terço do uso primário de energia – aumentará de 84 mil barris por dia em 2005 para 116 milhões de barris até 2030, apesar do acesso cada vez mais difícil ao petróleo e os altos riscos para o meio ambiente.
Telas planas e desperdício de comida
Mas como isso é possível, especialmente na Alemanha, onde a revolução verde se espalhou pela sociedade e entre todos os partidos políticos, com exceção do eternamente retrógrado Partido de Esquerda? Ou melhor, como é possível depois que a sociedade foi exposta a quase 40 anos de esclarecimento sobre a proteção ambiental, proteção ao clima e sustentabilidade? (O trabalho pioneiro “Os Limites do Crescimento” foi publicado em 1972.) Por que os gráficos de consumo e recursos ambientais apontam drasticamente para o alto se os alemães são tão conscientes do meio ambiente e do uso de energia que apoiam orgulhosamente a decisão de seu governo de reduzir a energia nuclear? E balançam a cabeça em desgosto quando veem pessoas em lugares como Kuala Lumpur ou Dakar jogando lixo nos rios e nas ruas?
A resposta é simples. O consumo aumentou constantemente nessas mesmas décadas, trazendo um aumento correspondente no lixo e nas emissões. Por exemplo, 50 anos atrás um Mini não era apenas um carro pequeno, mas também leve (617 quilos) e conseguia transportar quatro pessoas com apenas 34 cavalos de potência. Hoje, o Mini está disponível nos modelos compacto, conversível, station wagon e coupé, e até como um SUV de 1.470 quilos com até 211 cavalos de potência.
Os lares alemães agora têm várias TVs de tela plana, ar condicionados, um refrigerador norte-americano que produz gelo (no caso de Dean Martin aparecer), e o tipo de cozinha que inclui equipamento suficiente para atender a dois albergues da juventude totalmente ocupados. Numa década, os moradores do mundo ocidental dobraram a quantidade de roupas que compram. A IKEA-ização do mundo, ou seja, a transformação de bens de consumo duráveis em bens de consumo não duráveis, progride num ritmo furioso. Graças aos esforços incessantes de Steve Jobs e Bill Gates, a vida útil dos aparelhos eletrônicos continua reduzindo. E por fim, cerca de 40% da comida nos EUA e 30% da comida na Europa é jogada no lixo antes de ser comida.
Perfeitamente natural – para uma economia do crescimento
Essa é precisamente a forma como as coisas deveriam acontecer numa economia de crescimento, que só pode funcionar com a invenção de novas necessidades uma vez que nossas necessidades vitais – aquelas referidas pelo Artigo 25 – foram supridas.
Sociedades ricas percebem como um direito humano o fato de seus membros se submeterem a esse tipo de manipulação e serem capazes de preencher seu mundo com itens inúteis. Quando eu sugeri num programa de entrevistas há alguns anos que as pessoas deveriam considerar passar as férias em casa em vez de voar constantemente para outros lugares, recebi telefonemas furiosos, até de alguns de meus amigos. A ideia de que simplesmente temos direito a tudo que é vendido na nossa sociedade de consumo está profundamente arraigada. Mas não é sábio aceitar todas as ofertas dessa sociedade, porque elas são o resultado da exploração predatória dos recursos dos quais outras pessoas precisam para sobreviver, tanto hoje quanto no futuro.
A globalização tinha como reputação aumentar a riqueza geral, permitir que novas classes médias se desenvolvessem e reduzir a desigualdade social e a pobreza. Mas a verdade de que um sétimo da humanidade é desnutrida, dois bilhões de pessoas não têm cuidados médicos adequados, um bilhão não têm acesso a agua limpa, e mais de 200 milhões de crianças são soldados, prostitutas, trabalhadores migrantes e fabricantes de tapetes.
Visto sob essa luz, o Artigo 25 não é nada além de uma utopia para o bilhão de pessoas no final da pilha. O maior escândalo é que as disparidades não estão diminuindo nem numa escala nacional nem global. Hoje cerca de 1.200 pessoas são donas de cerca de 3% de todos os títulos privados do mundo, enquanto metade da humanidade é dona de menos de 2%.
Qualquer um que disser que a cultura de consumo e desperdício dos países industrializados influenciada pelo Ocidente deve ser reduzida a um nivel compatível com a sobrevivência recebe prontamente o contra-argumento de que não se pode negar às pessoas nas economias emergentes o padrão de vida que nós damos por certo.
Este é um argumento ideológico, porque ignora convenientemente a enormidade de diferenças nas circunstâncias e no consumo de recursos no mundo todo, e porque o argumento repetido constantemente de que todos querem ser como nós não é nada além de um esforço claro para legitimar nosso estilo de vida idiótico. A lógica falha desse argumento é de que se todos imitarem nosso estilo de vida, isso deve ser correto, mesmo que o futuro seja destruído como resultado.
De fato, é precisamente isso que está acontecendo. Não só a destrutividade crescente das sociedades de consumo é atingida ao custo dos vencedores ficarem mais ricos e os perdedores ficarem mais pobres; mas também constitui uma injustiça geracional de proporções históricas. Como continuamos abusando dos recursos em todos os aspectos, não haverá muito disponível para as crianças e os jovens de hoje. Com certeza não haverá liberdade para moldar o futuro com tanta facilidade quanto tinham os membros da minha geração.
Um trabalho para os políticos
Recuperar o futuro – e a redenção do Artigo 25, tanto num senso global quanto temporal – são desafios políticos. Uma “revolução energética” não é suficiente. O que precisamos é de uma nova intolerância de nossa violação crônica do direito humano de sobrevivência futura. Quando o movimento ambientalista ascendeu nos anos 70 ele era bem mais político do que é hoje. E quando os críticos sociais e pensadores como Ivan Illich, André Gorz, Hans Jonas e Carl Amery conduziram o debate, não foi sem uma visão só voltada para os recursos, mas também em direção ao contexto social no qual eles são usados. Sem uma mudança radical em nossa economia e modo de vida, não conseguiremos passar do século 21.
Há alguns anos, o escritor Robert Menasse escreveu que “mesmo o capitalismo de Manchester não era civilizado pelo fato de que os tomadores de decisões políticas perguntavam submissamente aos capitalistas o que precisavam para continuar competitivos e assegurar Manchester como um local de produção, mas, ao contrário, pelo fato de que os políticos impuseram limites sobre o capital e gradualmente produziram mais condições básicas razoáveis. Se os capitalistas fossem questionados, eles afirmariam honestamente e, infelizmente, razoavelmente (de acordo com as suas leis da razão) que nada poderia funcionar sem o trabalho infantil e jornadas de 12 horas. Decisões políticas foram necessárias, decisões que tiveram de ter tomadas em face de uma resistência massiva. Mas elas foram tomadas de qualquer forma. O trabalho infantil foi banido, e a jornada de 8 horas foi introduzida.”
Nem a abolição da escravidão nem a aquisição de direitos humanos nos Estados Unidos foram fruto do diálogo livre e agradável entre o governo e as grandes empresas. São precisamente esses exemplos, na verdade, que mostram como a modernização só resulta da eliminação dificilmente conquistada de privilégios.
É por isso que nossa sociedade contemporânea e suas políticas são tão antiquadas: elas se recusam a restringir os privilégios sobre o uso de recursos da forma como sempre foi feito durante a história da era moderna. A política não está fazendo progresso porque proteger privilégios se tornou o principal propósito da atividade política. Pode-se descrever isso como uma ditadura do presente à custa do futuro. Ou talvez como o oposto da inteligência. Mas certamente não como um direito humano.
Tradução: Eloise De Vylder*
Traduzido do alemão por Christopher Sultan.
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César Torres