Fiocruz promove conferência no início de outubro para discutir o papel da biodiversidade no bem-estar do ser humano.
Coordenadora do Programa Biodiversidade e Saúde da Fiocruz, a bióloga Marcia Chame alerta para a ainda pouco conhecida – e discutida – relação entre a riqueza da natureza e o bem-estar. A 1ª Conferência Brasileira em Saúde Silvestre e Humana acontece no fim do mês e contará com alguns dos principais cientistas que estudam o tema no Brasil e no mundo.
Por que preservar a biodiversidade é importante para a saúde?
A biodiversidade presta um importante serviço ecossistêmico difícil de ser percebido, que é o de criar uma diluição na transmissão de doenças. Quando se tem um grande conjunto de espécies, muitas vezes temos agentes etiológicos (vírus, bactérias, parasitas, fungos) que são específicos, só ocorrem em um determinado animal ou grupo de animais, mas muitos outros não são assim, são capazes de circular entre várias espécies. Dos 1.407 patógenos (agentes causadores de doenças) registrados para a espécie humana, 58% são compartilhados com animais, especialmente os silvestres. E num conjunto de espécies temos algumas que são boas transmissoras de doenças, enquanto outras são más transmissoras. Somados estes grupos, as más transmissoras diluem o processo de transmissão. Por isso, para mim, a saúde na verdade é o maior e melhor indicador de sustentabilidade que podemos ter, pois se você tem uma população saudável isso significa que ela come bem, tem uma água de boa qualidade e o ambiente em que ela vive também é saudável no sentido de que ele é rico e capaz de diluir a transmissão de doenças.
Com uma variedade menor de espécies, diminuímos este efeito de diluição. Quando desmatamos tudo e por um azar ficamos com uma espécie que é uma boa transmissora, ou que é um bom vetor, e ainda colocamos o homem naquele ambiente e ele é um bom receptor daquele agente, acabou. O ciclo está feito, o agente está estabelecido na espécie humana e desfazer isso é um enorme problema. Outro problema envolve a questão dos predadores. Com o avanço da presença humana, a primeira coisa que some são os grandes predadores. E as populações de animais são equilibradas pelos seus predadores naturais. Se eu tiro estes deles, populações do meio do sistema passam a crescer muito. E com este crescimento, há um aumento da densidade de indivíduos, o que promove uma maior circulação dos agentes etiológicos entre eles. Vemos isso, por exemplo, com os roedores silvestres. Ao tirar as corujas, os gaviões e as raposas que comeriam todos esses ratos, sua população explode. E junto com isso ainda criamos monoculturas e não somos muito eficientes na coleta dos grãos produzidos, deixando restos pelo caminho. Então, estamos colocando alimento, espaço e falta de predadores no ambiente em que nós também estamos e o resultado não poderia ser diferente: a população de roedores explode, a convivência com os humanos está mais próxima e começamos a ver casos de doenças que não víamos antes, inclusive, às vezes, coisas novas, pois antes não participávamos deste ciclo de transmissão. Neste processo, o ser humano passa a ser um novo hospedeiro de um agente.
A hantavirose é um exemplo claro. Nossos grandes campos de monoculturas estão criando populações enormes de roedores silvestres. Não é por acaso que nossos grandes surtos de hantaviroses são onde temos o estabelecimento de uma habitação humana nova próxima destes roedores com uma grande circulação de agentes entre eles. Outra coisa que vemos é que a fragmentação e isolamento das áreas naturais acabam fazendo com que sobrevivam apenas as espécies com uma alta capacidade de adaptação, o que em geral está associado ao fato de serem boas transmissoras ou vetores de doenças. Mais um exemplo é a raiva na Amazônia, onde morcegos hematófagos que se alimentavam do sangue de pequenos mamíferos que caçavam na selva e, por isso, tinham uma população restrita, agora têm nas vacas e no próprio homem um banquete servido, o que fez triplicar o número de casos em apenas dois anos. E os exemplos continuam. Um levantamento recente indica que a construção de hidrelétricas aumenta em 400 vezes o risco de uma pessoa pegar malária. Também temos um estudo grande aqui na Fiocruz sobre a doença de Chagas e a coleta de açaí que mostra que a perda de diversidade das espécies silvestres de mamíferos de pequeno porte leva a um aumento no número de casos. Houve uma derrubada dos sub-bosques para aumentar as áreas de produção, que também foram trazidas cada vez mais para perto das moradias. Assim, a população de barbeiros das palmeiras do açaí, que tinha todo um conjunto de espécies para se alimentar e diluir a transmissão, agora tem só os gambás. E os gambás gostam de viver perto da casa das pessoas, que trouxeram com elas seus cachorros e porcos. O barbeiro então passa a se alimentar dos gambás, dos cachorros e porcos até que chega uma hora em que ficam apenas os cachorros, os porcos e o homem, e aí o ciclo de transmissão está inteiramente dentro de casa.
Entrevista em O Globo, socializada pelo Jornal da Ciência / SBPC, JC e-mail 4600. EcoDebate
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelos comentários.
César Torres