Para que serve um rio? Para pescar, para banhar, para navegar, para amamentar. Sim, as mulheres indígenas e ribeirinhas costumam levar seus bebês para banhar-se no rio e os alimentam ali mesmo, dentro d’água, onde as crianças flutuam tranquilas abraçadas ao seio materno. Um rio tem muitos “aproveitamentos”, muito mais do que geralmente se imagina. É o que ensinam as crianças e populações indígenas que vivem à beira do rio Xingu.
Visitei em novembro de 2009 (1) a comunidade ribeirinha Vila da Ressaca e a Terra Indígena Arara, ambas na Volta Grande do Xingu, região que seria a mais atingida no caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Se construída, a barragem desviaria o curso do rio Xingu, diminuindo drasticamente sua vazão, o que inviabilizaria as inúmeras relações que os povos que aí vivem mantêm com o rio. Hoje, os usos e sentidos que o Xingu possui para os grupos sociais que dele e com ele vivem são plenamente compatíveis entre si. Uma vez construída a barragem, o único uso possível do rio seria como força motriz para geração de energia — para quem?
Visitei em novembro de 2009 (1) a comunidade ribeirinha Vila da Ressaca e a Terra Indígena Arara, ambas na Volta Grande do Xingu, região que seria a mais atingida no caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Se construída, a barragem desviaria o curso do rio Xingu, diminuindo drasticamente sua vazão, o que inviabilizaria as inúmeras relações que os povos que aí vivem mantêm com o rio. Hoje, os usos e sentidos que o Xingu possui para os grupos sociais que dele e com ele vivem são plenamente compatíveis entre si. Uma vez construída a barragem, o único uso possível do rio seria como força motriz para geração de energia — para quem?
Basicamente para suprir grandes projetos de mineração, siderurgia e demais indústrias eletrointensivas altamente poluentes, que respondem pela maior fatia do consumo energético nacional e pagam as menores tarifas, subsidiadas por nós e nossas contas de luz cada dia mais caras. Mas qual o sentido, para as comunidades locais e para a sociedade brasileira como um todo, da produção de energia voltada em grande parte para a indústria siderúrgica e do alumínio? Desejamos com nossos rios alimentar, por exemplo, a demanda do mercado por chapas de aço para a insustentável expansão da frota de automóveis individuais, que vêm tornando insuportável o deslocamento em nossas cidades? Aceitamos que nossas riquezas sejam espoliadas segundo a lógica de uma “acumulação primitiva permanente” geradora de “depredação cultural, desfiliação, degradação ambiental e predação de pessoas e espaços geográficos” (2). Em outras palavras, desejamos crescer a qualquer custo?
A perspectiva da justiça ambiental indaga: e se os processos de tomada de decisão política incorporarem seriamente como critério que não deverá haver impactos desproporcionais de grandes obras sobre grupos sociais vulnerabilizados? E se esses grupos puderem fazer ver e valer seu modo de vida e terem respeitados os muitos aspectos não monetarizáveis de seu mundo? E se os grupos potencialmente atingidos puderem mostrar para a sociedade abrangente todas suas riquezas incomensuráveis em relação às quais o nosso modo de vida — baseado no consumo incessante e no uso predatório dos recursos naturais — é cego? O que há no rio Xingu que não pode ser simplesmente esmagado e transformado em mercadoria? O que é este rio para os povos indígenas e ribeirinhos que ali vivem?
A perspectiva da justiça ambiental indaga: e se os processos de tomada de decisão política incorporarem seriamente como critério que não deverá haver impactos desproporcionais de grandes obras sobre grupos sociais vulnerabilizados? E se esses grupos puderem fazer ver e valer seu modo de vida e terem respeitados os muitos aspectos não monetarizáveis de seu mundo? E se os grupos potencialmente atingidos puderem mostrar para a sociedade abrangente todas suas riquezas incomensuráveis em relação às quais o nosso modo de vida — baseado no consumo incessante e no uso predatório dos recursos naturais — é cego? O que há no rio Xingu que não pode ser simplesmente esmagado e transformado em mercadoria? O que é este rio para os povos indígenas e ribeirinhos que ali vivem?
Para se ter uma ideia das riquezas naturais encontradas no Xingu, basta saber que ele sozinho contém mais espécies do que todos os rios da Europa juntos. O conhecimento da vasta — e ainda pouco estudada — biodiversidade local não escapa às crianças que aí vivem: “No rio Xingu nós temos muitos peixes como: o pirarara, o tucunaré, o caratinga, a bicuda, a cachorra, o piau, a matrixã, o tambaqui, o curimatã, muitas arraias de fogo, o pirarucu e também o pacu-folha, o pacu e o tracajá”. A biodiversidade “cultivada” pelos povos que aí vivem também é por elas destacada: “nós plantamos a cana, o cupuaçu, a graviola, a manga, o abacaxi e muitas verduras e frutas. Na roça, que depende das águas do rio, as pessoas vivem muito bem com seu cultivo, o cacau, o arroz, o feijão, o milho, a banana, o açaí, a melancia, o tomate e a laranja também”. As crianças assinalam, ainda, a diversidade de espécies animais do Xingu: “Na fauna são bonitos os animais como a arara, o macaco e o periquito, os pássaros voando na água e os peixes pulando de um lado para o outro. E lembrando das caças: o veado, a paca, a cutia, o porcão do mato e a onça, que devem ser preservados.”
Os usos do rio para transporte e lazer — que seriam inviabilizados no caso da construção da barragem e da usina — são também lembrados. Num jogo de palavras perspicaz, o menino Marcos, de 12 anos, nos revela que “no rio Xingu há muitos aproveitamentos”, enquanto o Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte suporia a imposição de um único uso do rio, incompatível com os demais: “nele eu tomo banho, pesco, lavo roupa, vou às praias, cachoeiras e ando de barco. Nós podemos viver da pesca e ir à praia domingo comer peixe assado, o nosso grande e famoso cari”.
Os usos do rio para transporte e lazer — que seriam inviabilizados no caso da construção da barragem e da usina — são também lembrados. Num jogo de palavras perspicaz, o menino Marcos, de 12 anos, nos revela que “no rio Xingu há muitos aproveitamentos”, enquanto o Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte suporia a imposição de um único uso do rio, incompatível com os demais: “nele eu tomo banho, pesco, lavo roupa, vou às praias, cachoeiras e ando de barco. Nós podemos viver da pesca e ir à praia domingo comer peixe assado, o nosso grande e famoso cari”.
A reação virulenta do governo brasileiro à pertinente decisão da OEA de solicitar a imediata suspensão do licenciamento de Belo Monte, pelo fato das Oitivas Indígenas não terem sido cumpridas, indica uma opção política clara por um desenvolvimentismo predatório, ao custo da supressão da viabilidade dos modos de vida dos povos do Xingu. Ora, o governo não fez oitivas porque, se as fizesse, os indígenas simplesmente não aceitariam a construção da usina. Qual grupo consentiria assinar de bom grado sua sentença de morte? Quem aceitaria deixar de lado um modo de vida autônomo para tornar-se objeto de “medidas mitigatórias” oferecidas por grandes empreiteiras que não conseguem sequer garantir condições dignas de trabalho em um canteiro de obras — vide o caso da Usina de Jirau, em Rondônia? Afirma o indígena José Carlos Arara: “Não queremos ser parasitas dos outros. Não aceitamos medidas mitigatórias. Queremos continuar a plantar e pescar e manter nossa vida como ela é hoje”.
A desestruturação do rio é indissociável da desestruturação de modos de vida. As sociedades indígenas e ribeirinhas não dependem do rio apenas para sua subsistência — o que em si já seria muito — mas a própria constituição de pessoas nesses coletivos se faz a partir de uma relação completamente integrada às dinâmicas do rio. Como afirma Watatakalu Yawalapiti: “O índio vive do beiju e do peixe. A minha comunidade não consegue viver sem o peixe. E o rio Xingu é o que dá o peixe pra gente. Se morrer o Xingu, a gente morre junto, porque o rio é tudo para nós” (3). Ou ainda, a fala indignada de Tuíra Kayapó em audiência pública no Senado Federal em dezembro de 2009: “o rio Xingu é meu pai, o rio Xingu é minha mãe. Vocês dizem na minha frente que vão matar o meu pai, que vão matar a minha mãe”.
No Relatório de Impacto Ambiental, as empresas propõem compensar com dinheiro o que não tem preço, através de um “Projeto de Reparação”, que “deverá reconhecer as perdas não-materiais sofridas pelas pessoas atingidas, ligadas à cultura e ao sentimento das pessoas com a região a ser afetada, recompensando materialmente e ajudando a recompor seu modo de vida” (RIMA Belo Monte, 2009, p.157).
As crianças do Xingu apresentam um quadro lúcido das perdas incomensuráveis que Belo Monte causaria: “Se a barragem sair, nós vamos perder casas, morrem os animais que criamos, não vai ser possível pescar bem, andar de barco, nem de canoa. Podem acontecer muitas desgraças para os animais e os pássaros. Os peixes não vão mais reproduzir se o rio não encher. Os animais que gostam de beber e se banhar nessas águas do rio com tanta vontade vão ficar muito tristes, porque não vai ter mais estas águas, só secura imensa. A dinâmica da proliferação de doenças como a malária é por elas evidenciada: “Se o rio secar, vem muita praga de mosquito carapanã, vão trazer muitas doenças e não vai dar para nossa comunidade se deslocar para outro lugar.”
Numa região em que o rio é o principal meio de transporte, muitas crianças perderão o direito de estudar, já que não terão meios de acessar a escola: “se o rio secar eu não vou poder vir estudar aqui na Ressaca”. Os moradores ribeirinhos — muitos dos quais descendentes de imigrantes nordestinos — perderiam seu pedaço de terra arduamente conquistado: “Se a barragem sair, muitos moradores não terão indenização, porque não têm documentos de casas e terrenos”.
Por fim, as crianças traçam o quadro de desalento e miséria que seria trazido pela construção da barragem e lançam à sociedade um apelo à resistência: “Algumas pessoas que sobrevivem da pesca não vão ter como pescar, porque exatamente o rio vai secar todo para as pessoas da Volta Grande, enquanto que para as pessoas de Altamira o rio vai aumentar e as casas vão se alagar. Com a construção da barragem, o peixe irá faltar, a fome chegará, as pessoas não terão de onde tirar o que comer. Não vamos ter condição de fazer casas para nós morarmos, nem condição para comprar roupa, móveis, nós vamos perder muita coisa aqui dentro. Nós temos que impedir essa barragem de sair”.
Como se vê, as crianças e populações indígenas do Xingu têm muito a nos ensinar. Eles nos mostram, por um lado, que um outro modelo de produção e consumo — sustentável e democrático — já existe Brasil adentro. Este modelo, ou melhor, essas saídas sempre criativas e combativas dos que escapam à mercantilização do seu território e modo de vida vêm sendo arduamente defendidas pelos indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores e pescadores do rio Xingu. Esses grupos sociais — que alguns já chamaram de “entraves ao desenvolvimento” — são os poucos ainda capazes de traçar linhas de fuga em relação ao modelo de produção e consumo hegemônico e apontar saídas para os impasses societais que vivemos. As soluções que propõem não envolvem, porém, grandes empreiteiras, empréstimos vultuosos de bancos públicos, construções faraônicas e predação de pessoas. São mais simples e eficientes. Suprem necessidades e vontades e garantem autonomias. Desconfiam do tal “desenvolvimento”.
Os povos do Xingu nos mostram, enfim, que um outro mundo já está sendo possível há muito tempo, nós é que pouca atenção prestamos a ele...
CECÍLIA CAMPELLO DO AMARAL MELLO é antropóloga
A desestruturação do rio é indissociável da desestruturação de modos de vida. As sociedades indígenas e ribeirinhas não dependem do rio apenas para sua subsistência — o que em si já seria muito — mas a própria constituição de pessoas nesses coletivos se faz a partir de uma relação completamente integrada às dinâmicas do rio. Como afirma Watatakalu Yawalapiti: “O índio vive do beiju e do peixe. A minha comunidade não consegue viver sem o peixe. E o rio Xingu é o que dá o peixe pra gente. Se morrer o Xingu, a gente morre junto, porque o rio é tudo para nós” (3). Ou ainda, a fala indignada de Tuíra Kayapó em audiência pública no Senado Federal em dezembro de 2009: “o rio Xingu é meu pai, o rio Xingu é minha mãe. Vocês dizem na minha frente que vão matar o meu pai, que vão matar a minha mãe”.
No Relatório de Impacto Ambiental, as empresas propõem compensar com dinheiro o que não tem preço, através de um “Projeto de Reparação”, que “deverá reconhecer as perdas não-materiais sofridas pelas pessoas atingidas, ligadas à cultura e ao sentimento das pessoas com a região a ser afetada, recompensando materialmente e ajudando a recompor seu modo de vida” (RIMA Belo Monte, 2009, p.157).
As crianças do Xingu apresentam um quadro lúcido das perdas incomensuráveis que Belo Monte causaria: “Se a barragem sair, nós vamos perder casas, morrem os animais que criamos, não vai ser possível pescar bem, andar de barco, nem de canoa. Podem acontecer muitas desgraças para os animais e os pássaros. Os peixes não vão mais reproduzir se o rio não encher. Os animais que gostam de beber e se banhar nessas águas do rio com tanta vontade vão ficar muito tristes, porque não vai ter mais estas águas, só secura imensa. A dinâmica da proliferação de doenças como a malária é por elas evidenciada: “Se o rio secar, vem muita praga de mosquito carapanã, vão trazer muitas doenças e não vai dar para nossa comunidade se deslocar para outro lugar.”
Numa região em que o rio é o principal meio de transporte, muitas crianças perderão o direito de estudar, já que não terão meios de acessar a escola: “se o rio secar eu não vou poder vir estudar aqui na Ressaca”. Os moradores ribeirinhos — muitos dos quais descendentes de imigrantes nordestinos — perderiam seu pedaço de terra arduamente conquistado: “Se a barragem sair, muitos moradores não terão indenização, porque não têm documentos de casas e terrenos”.
Por fim, as crianças traçam o quadro de desalento e miséria que seria trazido pela construção da barragem e lançam à sociedade um apelo à resistência: “Algumas pessoas que sobrevivem da pesca não vão ter como pescar, porque exatamente o rio vai secar todo para as pessoas da Volta Grande, enquanto que para as pessoas de Altamira o rio vai aumentar e as casas vão se alagar. Com a construção da barragem, o peixe irá faltar, a fome chegará, as pessoas não terão de onde tirar o que comer. Não vamos ter condição de fazer casas para nós morarmos, nem condição para comprar roupa, móveis, nós vamos perder muita coisa aqui dentro. Nós temos que impedir essa barragem de sair”.
Como se vê, as crianças e populações indígenas do Xingu têm muito a nos ensinar. Eles nos mostram, por um lado, que um outro modelo de produção e consumo — sustentável e democrático — já existe Brasil adentro. Este modelo, ou melhor, essas saídas sempre criativas e combativas dos que escapam à mercantilização do seu território e modo de vida vêm sendo arduamente defendidas pelos indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores e pescadores do rio Xingu. Esses grupos sociais — que alguns já chamaram de “entraves ao desenvolvimento” — são os poucos ainda capazes de traçar linhas de fuga em relação ao modelo de produção e consumo hegemônico e apontar saídas para os impasses societais que vivemos. As soluções que propõem não envolvem, porém, grandes empreiteiras, empréstimos vultuosos de bancos públicos, construções faraônicas e predação de pessoas. São mais simples e eficientes. Suprem necessidades e vontades e garantem autonomias. Desconfiam do tal “desenvolvimento”.
Os povos do Xingu nos mostram, enfim, que um outro mundo já está sendo possível há muito tempo, nós é que pouca atenção prestamos a ele...
CECÍLIA CAMPELLO DO AMARAL MELLO é antropóloga
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César Torres