Para expandir atividades agro-silvo-pastoris, não há país com folga sequer comparável à do Brasil. Enquanto as melhores projeções indicam que em 2030 o conjunto dessas atividades demandará uma área total de 276 milhões hectares (ha), as análises de aptidão indicam a disponibilidade de 420 milhões ha. Melhor ainda é constatar que a parte com vocação para lavouras é o quíntuplo da que está sendo usada para tal fim: 300 x 60 milhões ha.
Bastam essas duas comparações para concluir que simplesmente inexiste gargalo macroeconômico que possa justificar o fuzuê que vem sendo armado para mudar regras e critérios requeridos pelo Código Florestal para que haja sensata conservação ecossistêmica.
É claro que vários aspectos dessa obsoleta lei precisam ser sintonizados aos avanços científico-tecnológicos que tornaram factíveis rápidos zoneamentos ecológico-econômicos. Mas a tais dispositivos não foi dada nem ínfima atenção no substitutivo ao PL 1879/99, atabalhoadamente aprovado por 410 deputados federais em 24 de maio 2011. Se a questão fosse adaptar o Código a uma visão voltada para o futuro macroeconômico do Brasil, ela certamente não teria posto o Ministério da Agricultura em rota de colisão com os ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário.
Não é por aí, portanto, que se pode entender a acachapante derrota dos agricultores familiares – respaldados por movimentos socioambientais e pela comunidade científica – frente ao patronato agropecuário – apoiado por influentes segmentos dos agronegócios, além de toda a malta da especulação fundiária. Só se consegue enxergar nesse denso nevoeiro com um olho voltado ao passado microeconômico e o outro bem aberto à atualidade mesopolítica.
A maior parte dos 5 milhões de proprietários, posseiros ou arrendatários que tiram mesmo que pequena parte da renda familiar de fazendas, granjas, sítios, ou chácaras, nunca se conformou com a necessidade de manter os atuais 50 milhões de ha que estão em reservas legais e em áreas de preservação, quase um sexto dos 330 milhões ha que ocupam. Muito menos está disposta a reflorestar terras indevidamente desmatadas, estejam em topos de morro, em margens de cursos d”água, ou em parcelas destinadas à reserva.
Essa dupla contrariedade setorial não chegou a gerar revolta enquanto o poder público fingiu fiscalizar e se fizeram de sonsos quase todos os detentores de imóveis rurais. Mas azedou desde 10 de dezembro de 2009, quando lhes foi dado prazo de regularização sujeito a punições que vão de restrições ao crédito a pesadas multas.
Criminalizados após terem sido por muitos anos induzidos pelos governos a ignorar a existência do Código, só podiam mesmo ficar indignados. E à bancada ruralista não poderia ter escapado tão boa oportunidade de amplificar uma bronca disseminada entre milhões de famílias que se veriam imediatamente beneficiadas com o relaxamento dos dispositivos legais de conservação agroecológica.
Bronca que foi exponencialmente aumentada em milhares de municípios por prefeitos, vereadores, diretores de cooperativas, dirigentes sindicais, radialistas, e outras espécies de cabos eleitorais. O que explica o inequívoco apoio da maioria dos 410 deputados que se juntaram ao esquadrão ruralista, pois são raros os que não dependerão desses cabos em candidaturas à reeleição. Para completar, tudo isso gerou a ocasião ansiosamente aguardada pelo PMDB: colocar a bancada do PT em xeque para lá de embaraçoso.
Essa foi a conjuntura de aprovação de um substitutivo com trágica consequência econômica, pois a disciplina de conservação que ele dilui está se tornando um dos mais importantes trunfos da competitividade global. A racionalidade de longo prazo só será atendida se forem acatadas as ponderações feitas no livro “O Código Florestal e a Ciência” pela ABC e SBPC (Academia Brasileira de Ciência e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
Por isso, a goleada na Câmara foi uma vitória de Pirro para os produtores agropecuários e seus parasitas dos agronegócios. É bom que comecem a torcer para que o Senado escute a comunidade científica sobre essa legítima bronca do setor e encontre uma saída que faça do vetusto Código uma lei de conservação agroecológica voltada para o futuro sustentável. Saída que precisará ter duas vias.
Uma que tranquilize os milhões de produtores que foram levados de boa fé a afrontar o Código, mas que nem por isso beneficie milhares de predatórios proprietários de grandes domínios do Centro-Oeste e do Norte, a quem o substitutivo ofereceu confortável carona.
Outra que viabilize a utilização das novas tecnologias geoespaciais para um ordenamento territorial racionalmente ancorado em zoneamento ecológico-econômico (como a Hand: “Height Above the Nearest Drainage”). Ordenamento que jamais resultará de legislação baseada em toscas porcentagens e metragens que ignoram realidades ecossistêmicas microrregionais.
José Eli da Veiga, professor da pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do mestrado profissional em sustentabilidade do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), escreve mensalmente às terças.
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico EcoDebate
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César Torres